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Diário de Travessia

Associação PédeXumbo (Atualizado em: 14 Junho, 2024 )

Dia 1, 13 de maio

Chegar, caminhar, habitar: conhecer a nova casa, percorrer caminhos, perder-se, mover o corpo em um espaço novo, conhecer pessoas. Sentir alegria. Procurar começos, procurar percursos, encontrar caminhos, repetir caminhos.
Trabalho de base no estúdio: aquecimento e preparação do corpo + improviso de boas vindas. Neste instante, ao improvisar movimentos nesta nova sala de dança, dei por mim a imaginar o trigo, campos de trigo, sementes, encontrei-me em imaginação com a palavra Celeiro: eu estava dentro de um celeiro. A cor amarela, o dourado, o pão. Depois, pensei na cor branca, a farinha. O alimento. Este bairro imaginado chama-se Celeiros. O contorno do bairro é uma invenção, habitá-lo é real, como comer pão. Anotação: pesquisar sobre este celeiro. Ter farinha de trigo como elemento cénico. Delimitar as fronteiras do bairro com farinha? Anotar ideias para a performance. Em pesquisas:

Celeiros particulares e Celeiros Barahona

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Os grandes proprietários de terras e os lavradores com maior índice de produção dispunham de celeiros próprios para arrecadar o seu cereal. Em Évora, algumas destas casas agrícolas particulares estabeleceram-se no quarteirão definido entre a rua do Cicioso e rua da República, o que demonstrou uma tendência na implantação destas estruturas naquele local devido à proximidade com a estação de caminho de ferro e de uma das principais artérias de ligação à cidade muralhada (rua da República).

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Ficou registada a presença de alguns destes edifícios pelas descrições que se passa a citar e que atualmente já não subsistem:
Celeiro da rua do Cicioso. Fica situado na rua do Cicioso no6 e muito próximo da rua da República, e a cerca de 500m da Estação de Caminho de Ferro … Celeiro da rua da República. Fica situado na Rua da República no133 e a cerca de 500m da Estação de Caminho de Ferro. É uma das ruas principais da cidade que liga directamente à Estação de Caminho de Ferro, bem como ao centro da cidade. (CME, 1942)
O edifício que ainda hoje se mantém, conhecido como celeiros da EPAC, remonta aos finais do século XIX e era uma dependência do Palácio Barahona, que pertenceu a esta família até à metade do século seguinte (MATOSO, 2014, 33).

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Habitualmente o cereal era distribuído pelos dois pisos, e armazenado a granel, pois esta metodologia de armazenagem oferecia boas condições para a sua conservação. Assim disperso e ventilado nas amplas salas deste celeiro, evitavam-se condições favoráveis ao aparecimento de fungos, e outras pragas. Adeslocação do cereal para o piso térreo, era feita por gravidade, através de um alçapão2.

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Trata-se de um edifício construído em alvenaria e tanto o rés-do-chão como o primeiro andar apresentam tetos construídos por abóbodas, suportadas por pilares centrais ou pilares adjacentes às paredes. A luz penetra por grandes janelões que compõem todos os alçados (LNEC, 1998).

Levantamento de material criativo: trabalho na rua.
Saí do espaço Celeiros, virei à direita, subi pela Rua de Cicioso, cheguei ao Largo dos Castelos, entrei à esquerda na Rua dos Castelos, estavam sentadas três senhoras a conversar na frente da casa número 26. Reparei nelas, cumprimentei-as, estava um cão a brincar, eu quis ficar, envergonhei-me, passei. Entrei à esquerda na Rua Fria. Encontrei a Rua das Peras, subi até o Largo da Misericórdia. Gostei do caminho, voltei. Fiz novamente. Gravei os sons, contei para mim mesma tudo que via. Ao passar pela segunda vez pelas senhoras, aproximei-me delas, cumprimentei-as outra vez, fiz festas ao cãozinho. Era uma cadela. Apresentei-me, puxei conversa, perguntei sobre o bairro. Elas me corrigiram: disseram que aquilo não é um bairro, que estamos no centro histórico de Évora. Eu insisti: sei que Évora é uma cidade, mas eu estava interessada neste bairro, vou dançá-lo. Não deram atenção para a dança, insistiram que isto não é um bairro, que são ruas do centro histórico. Falei sobre o antigo celeiro, falaram-me de um hotel. Tentei explicar a minha residência artística, não deram muita atenção, acho que não me perceberam. Eu pedi para me sentar ao lado delas, elas deixaram. Fiquei ali, a escutar, a falar pouco, a conhecê-las.
Dona Custódia mora no n.o 26, todas as outras reúnem-se ali, naquele lugar, aos finais de tarde. Eu disse que voltaria amanhã para estar com elas. Chegou outra amiga, costureira, afinal éramos cinco: Custódia, Luísa, Joaquina, Lurdes e eu. Amanhã, voltarei.

Dia 2, 14 de maio

Trabalho de corpo — manhã: ativar a pele, a carne, os ossos, a imaginação, dançar no espaço, dançar o espaço. Escuta dos áudios registados no primeiro contacto, de ontem, com as senhoras Custódia, Luísa, Joaquina e Lurdes. Improviso a partir da escuta de suas vozes, palavras, sons. Pesquisa de gestos inspirados na postura delas, olhares para o chão. Enquanto dançava, pensei que as ruas são as artérias da cidade, suas veias. A cidade como um corpo, o bairro como uma parte deste todo, um todo com muitas partes.
Pensei que as paredes são a pele da cidade. Na rua Fria, qual a temperatura das paredes? Qual a temperatura da minha pele ao passar por lá?
Levantamento de material criativo — tarde.
Em estúdio: escuta e improviso dos áudios registados na experiência na rua do dia anterior em diálogo com o disco de Keith Jarrett “Last Dance”. Seleção de fragmentos do áudio para construir núcleos coreográficos.

Na rua: fui ao encontro da Custódia, da Luísa, da Joaquina e da Lourdes no horário combinado. A caminho de lá, já na Rua dos Castelos mas antes de chegar no no26, na esquina com a Rua do Ramires, encontrei a Lourdes a conversar com uma senhora que eu ainda não conhecia, a Clotilde Carvalho. Apresentei-me para ela, disse que eu era bailarina e que estava a criar uma dança para aquelas ruas. Ela ficou super contente e disse que gostava muito de dançar (a dança finalmente entrou no jogo!) Eu logo senti muita alegria, já que ontem as senhoras não deram nenhuma atenção para o fato de eu estar a fazer uma residência artística e não se interessaram pelo tema, pelo menos não naquele momento.
Bem, hoje a Clotilde logo contou que dançava Valsa, Marcha, Tango e Suingue nos bailes da sociedade Joaquim António de Aguiar, que fica no centro histórico. Contou que eram bailes com orquestra e que foi lá que ela conheceu o marido. O pai dela era trabalhador rural e ela foi modista por mais de cinquenta anos. Fez vestidos de noiva lindíssimos bordados à mão por ela. Cantou uma música sobre estarmos a conversar na esquina:
Juntaram-se os dois à esquina a tocar a concertina e a dançar o sol e dó. (Amália Rodrigues Tiro Liro Liro). Ela tem 88 anos e mora na Rua do Ramires. A Clotilde estava a caminho do supermercado e eu combinei de encontrá-la amanhã no mesmo horário. No final da conversa, descobrimos que eu e a irmã mais velha dela temos o mesmo nome.

A seguir, continuei a caminhar no sentido do número 26 e logo encontrei a dona Custódia com a Lurdes e a Joaquina. Cumprimentei a dona Custódia e ela logo me convidou para entrar em sua casa. Ficamos a conversar por quase uma hora e elas me contaram suas histórias… A Lurdes é nascida em Évora e trabalhou a limpar vidros no Tribunal, estudou, trabalhou também num escritório e teve três filhos. A Custódia e a Joaquina trabalharam no campo na apanha da azeitona, na monda, colheita do arroz, do tomate… A Custódia tem três filhos e nasceu na vila de São Sebastião da Giesteira. Ela veio para Évora com 25 anose hoje tem 82. A Joaquina não mencionou filhos, mas contou que nasceu em uma vila chamada Terena, próxima daqui. Perguntei se alguma delas se lembra do antigo Celeiro, ou se tinham algum vínculo com o antigo celeiro e elas disseram que não… Também contaram que nunca participaram de ranchos corais. Então eu contei da minha coreografia e por onde estava a pensar passar nesta travessia e elas disseram para eu não passar pela Rua Fria, que não me deixavam. Eu não percebi e, ao perguntar o motivo, elas me contaram que ali está uma casa de prostitutas brasileiras…
Refleti, tomei tempo…
Decidi, então, perguntar em qual ruas elas pensam que eu devia dançar e a resposta foi: Rua do Ramires, Rua do Borralho, Rua da Madre de Deus e Rua dos Arcos. Abri o mapa do bairro Celeiros no chão e mostrei para elas, que se surpreenderam: “mas não está aí o nome das ruas… Onde é que estamos nós?” Eu mostrei onde estávamos nós e onde estava o Celeiro. A dona Custódia disse: “aaah a menina já sabe de cabeça!”
Antes de me ir embora, eu pedi para tirar uma foto e elas ficaram contentes.

Hoje, na casa da dona Custódia, na Rua dos Castelos, n.o 26. Do lado direito estão a Custódia e a Lurdes com a cadelinha Méli. Do outro lado estamos eu e a dona Joaquina. Como a luz ofuscou o meu rosto e o da Joaquina, eu pedi para tirar uma “selfie” nossa:

Dia 3, 15 de maio

Trabalho de corpo — manhã: ativar o contorno, a pele como fronteira da minha cidade-corpo, o meu próprio bairro-corpo. Ativar os caminhos internos deste território-corpo.Alongar, massagear, azeitar o copo, dançar o corpo, sentir mapas por onde os movimentos passeiam por dentro. Escuta do registo do dia anterior: a conversa com a dona Clotilde sobre as danças e as suas memórias. Improviso inspirado em sua voz e palavras. Escuta da música cantada por ela, “Tiro liro liro”, na versão de Amália Rodrigues, com orquestra. Experimento para criar três frases coreográficas: frase para o celeiro, frase para a Custódia, frase para a Clotilde. Primeiras possibilidades compositivas para estes três mundos gestuais.
Em estúdio — tarde: Olhar o mapa, pensar o percurso, refazer caminhos a olhar para o mapa, começar a definir o percurso, ter dúvidas, fazer riscos e rabiscos no mapa, começar a dar forma para a travessia, imaginar os caminhos, ver de cima (o mapa), pisar no chão do bairro. Desenhar o mapa no chão do pátio, entender os meus pés neste chão, neste mapa, encontrar o Norte, aprender o mapa, pensar com os pés e as mãos.

Na rua — continuação do levantamento de material criativo:
Ao chegar na Rua dos Castelos vejo ao fundo o grupo todo reunido, sentadas ao pé da porta n.o 26: a Custódia de chapéu, Luísa com os potes de comida das duas cadelas, Joaquina também com um chapéu para proteger do sol, Lourdes no cantinho de pernas cruzadas e, na outra ponta, Maria, que mora ao lado da Custódia. Méli, a cadela da
Custódia, estava lá também a brincar com a bolinha de ténis que sempre carrega na boca. Eu dei logo um grande sorriso e pedi para tirar uma foto de todas. Elas disseram que sim.

Sentei-me por ali e fiquei a conversar com elas. Me contaram que a Dona Clotilde tinha acabado de sair de lá e eu fiquei com pena de não a ter encontrado. Passados alguns minutos a Maria e a Luísa foram-se embora preparar o jantar, mas a dona Custódia disse para eu ficar mais um pouquinho a conversar. Fiquei. Foi quando ela me contou que era benzedeira porque a avó dela também era. Eu quis saber mais sobre isso, ela me contou que benze a cozer uma linha e a recitar versos de uma oração. Carrega também nove pauzinhos para saber quantas vezes já cozeu as cruzes, na novena. Então ela disse que me ensinaria a dizer a oração, que me benzeria. Eu pedi para gravar as suas palavras e ela disse que sim. Neste momento eu me emocionei. Ela estava a dizer a oração para mim, e eu chorei. Fiquei muito emocionada, aquilo me tocou.

Da esquerda para a direita: Maria com a cadela Nina ao colo, Méli com a bolinha de tênis, Custódia de chapéu, Luísa com a cadelinha Minie ao colo, os potinhos de comida no chão, a outra cadela da Luísa, a Joaquina de chapéu e a Lourdes.

A seguir, ela me disse que deveríamos bater à porta da Clotilde para ela conversar mais um bocadinho, e eu fui com ela até o no 1A da rua dos Ramires. Batemos na porta e a dona Clotilde apareceu. Disse que estava a comer e já nos encontrava lá na dona Custódia. Quando a dona Clotilde chegou, cantou para mim a música Tiro Liro Liro. Disse que essa é para dançar a pares. Eu perguntei se podia dançar sozinha, ela disse que sim, que eu posso. Dancei um bocado com ela, na rua, foi divertido. Ela contou que, quando se apresentava, tinha uma farda que era uma camisa cor de munganga e uma saia preta. Já tenho ideias para o figurino da performance. Conversamos mais um pouco, foi um fim de tarde bonito.
Antes de ir embora, eu pedi para que elas me dissessem um percurso a partir da Rua dos Castelos, uma vez que elas consideram que eu não devo passar pela Rua Fria. Então elas disseram assim: vai pela Travessa dos Arcos, depois passa pela farmácia Diana e chega no Largo da Misericórdia onde estava a igreja. Fiz este caminho e continuei para casa.

Dia 4, 16 de maio

De manhã, a caminho do espaço Celeiros, passei pelo salão da Mena Cabeleireiros, que fica na Rua dos Arcos, e fiz marcação para fazer um penteado no dia da apresentação, 24 de maio, pelas 16h00. Dançarei com um penteado feito pela Mena, na Rua dos Arcos.
Trabalho de base no estúdio — manhã: aquecer e preparar o corpo, sensibilizar a pele, ativar o tónus muscular, percorrer caminhos no corpo e criar mapas internos. Improvisar a partir dos gestos de benzer da dona Custódia.
Trabalho de reconhecimento do alguidar de fazer pão: sentir o peso do objeto, experimentar possibilidades de dançar com ele.

Ensaio no pátio do Espaço Celeiros: construção de um mapa do bairro no chão do pátio. Orientar o Norte, encontrar as proporções deste desenho. Perceber os caminhos que farei no bairro dentro deste mapa desenhado no chão. Dançar aí dentro.
Em estúdio — tarde: chegada de Ariel Rodriguez, músico compositor da paisagem sonora do espetáculo. Montagem do equipamento de som, instrumentos e aparelhagens no estúdio.
Na rua: caminhada pelo percurso que se vai definindo e captura das sonoridades da rua, com Ariel. Encontro com Lurdes, Joaquina e Custódia ao pé do n.o 26 da Rua dos Castelos.
Elas ficaram contentes por conhecer o Ariel.
Regresso ao pátio do Espaço Celeiros: ensaio com farinha de trigo para delimitar as fronteiras do bairro, num mapa forjado no chão, para ser dançado.
Experimentos com o alguidar e com a farinha.mapa do bairro desenhado com farinha.

Materiais de trabalho no estúdio: alguidar, mapas, cadernos.

Mapa do bairro desenhado com farinha de trigo no chão do pátio Celeiros.

Dia 5, 17 de maio

Trabalho de base no estúdio — manhã:
Reunião com Ariel Rodriguez sobre a banda sonora, estímulos musicais e registos que deverão fazer parte da composição da paisagem sonora da travessia. Trabalho de corpo em estúdio: improviso de música e dança como prática diária.

Caminhada pelo percurso que será coreografado para cronometragem do tempo de travessia, com registo de sons e referências coreográficas que já se vão desenhando.
Durante a caminhada, encontramos a dona Custódia e dona Joaquina ao pé do no 26 da Rua dos Castelos, conversamos um bocadinho e combinamos de nos encontrar mais tarde, pelas 17h.

Em estúdio, construção de uma “linha sonora de percurso” com referências de espaço e de tempo dentro do caminho que está sendo coreografado, para guiar a composição do Ariel. Definição do percurso, com ponto de partida, caminho de travessia e ponto de chegada.

Tarde — trabalho de criação no estúdio: definição e investigação de aspetos importantes para a construção da paisagem sonora e gestual do percurso, que já se desenhou e está definido. Estudo de quais referências sonoras, imagéticas e gestuais cada rua deste percurso oferece, além dos vínculos pessoais e material criativo levantado em campo até ao presente momento. O percurso ficou desenhado assim: 

Imagem do google maps com o desenho do percurso dentro.

Mapa do bairro riscado em diferentes cores, durante o processo de decisão de quais seriam os caminhos do percurso. O desenho final é o que está em amarelo.

Na rua: ao final do dia, ainda houve tempo de fazer um vídeo do percurso completo com a câmara GoPro, para melhor visualização dos caminhos e para tentar perceber o tempo que leva o percurso a dançar.
Ainda nos encontramos com a Custódia, Joaquina, Luísa e Lurdes no no 26 da rua dos Castelos, para conversar um pouquinho e despedir. Amanhã, voltaremos.

Dia 6, 18 de maio

Prática da manhã — trabalho de base no estúdio: improviso de dança e música para ativar, sensibilizar e disponibilizar o corpo para a criação.
Começo da composição gestual: mergulho na coreografia propriamente dita. Criação de células coreográficas e composição dos caminhos do corpo dentro do percurso desenhado.
Composição da paisagem sonora da travessia: escolhas dos áudios que farão parte da criação das músicas. Análise do vídeo realizado no dia anterior para captura de detalhes das ruas e duração de cada cena dentro da travessia, para composição da banda sonora.
Trabalho criativo/compositivo — tarde: chegada de João Matias, antropólogo convidado pelo projeto. Atualização da pesquisa que ele vem realizando sobre a história e toponímia da cidade de Évora e do Celeiro. Discussão dos conceitos, reflexão e partilha do processo de criação.

Continuação da composição coreográfica — trabalho em estúdio: criação da coreografia (gestos e investigação das diferentes qualidades de movimento que estarão presentes na composição) cena por cena. Ensaio no pátio Celeiros, com o alguidar e a farinha. Continuação da investigação na rua: Fui encontrar a dona Custódia, a Joaquina, a Luísa e a Maria (vizinha da Custódia) na Rua dos Castelos e ficamos a conversar ao pé do no 26outro fim de tarde, em que comentaram sobre os mais variados assuntos, do arcebispo da cidade até as suas questões mais cotidianas, como o jantar, as visitas dos filhos e os turistas que passam sempre por ali.

Trabalho de criação coletiva no estúdio: eu a criar e ensaiar a coreografia com a farinha, Ariel a compor a banda sonora e João a escrever a sua reflexão e continuar a sua pesquisa.

Dia 7, 19 de maio

Manhã:
Continuação do trabalho de criação no estúdio – treino e prática de preparação, sensibilização, flexibilização e fortalecimento do corpo. Improviso de dança e música.
Continuação do trabalho compositivo – criação de núcleos coreográficos para cada rua da travessia, anotações e investigação em estúdio.
Ariel Rodriguez continuou com o trabalho de criação e composição da paisagem sonora. João Matias seguiu na sua pesquisa investigativa e escrita do texto reflexivo sobre o processo de criação.
Tarde:
Trabalho focalizado na partitura gestual da Rua dos Castelos, em estúdio. Trabalho no pátio do Espaço Celeiro com o alguidar: estudo e composição da cena de abertura da peça.
Ensaio de pequenos núcleos coreográficos em sintonia com a paisagem sonora que vai
tomando forma.
Continuação dos trabalhos criativos em conjunto, no estúdio: eu a pensar/criar a coreografia, o Ariel a compor a paisagem sonora, o João a colocar questões reflexivas e trocas de ideias em todos.
Rua:
Fui para rua com o desejo de fazer o percurso inteiro com o alguidar de barro, para perceber o seu peso, os apoios para o carregar enquanto danço e as possibilidades de relações com este objeto no percurso. Quando passei pela Rua dos Castelos, a Custódia logo me disse para eu ter cuidado, que o alguidar é muito pesado e eu poderia magoar a minha coluna. Eu expliquei que quero dançar com este alguidar por motivos simbólicos, importantes para a criação que estou a realizar. Ela e a Joaquina logo disseram que eu não ia aguentar, que aquilo era muito pesado para mim. Então, entrou em casa e trouxe um outro alguidar, de plástico, cor de laranja. Disse que eu deveria utilizar este, que é muito mais leve e não me magoará. Eu agradeci e tentei argumentar dizendo que aquele alguidar de barro era mais bonito, e ela insistiu que ele poderia magoar a minha coluna. Então, sentei-me ao lado dela, dei-lhe um abraço e agradeci a preocupação. Foi quando ela me contou que foi com um alguidar desses, mas cheio de azeitonas, que magoou a própria coluna. Logo eu percebi tudo. Ela teme que aconteça comigo o que aconteceu com ela. Eu disse, então, que levaria o outro alguidar, o laranja, para o estúdio e que ia ensaiar com ele.

Ao regressar para o estúdio, fiquei a refletir sobre o tema com João e Ariel. Decidi que, na Rua dos Castelos, não dançarei com o alguidar. Respeitar a dona Custódia é muito importante para mim, e o alguidar não traz boas lembranças para ela. Decidi então criar um caminho dramatúrgico para o alguidar, como objeto cénico e onde vou carregar a farinha,que é tão importante para a coreografia. Eu estarei com ele na cena de abertura e em todo o princípio do percurso, até ao momento da cena em que danço os gestos de amassar pão, na frente do café Pão de Rala, na Rua de Cicioso. Depois, o alguidar vai ressurgir na pedra do bairro Celeiros, no Largo da Misericórdia, e seguirá comigo durante o restante do percurso, onde faz todo o sentido, como metáfora do celeiro.
Ainda ao final do dia, escrevemos a sinopse para a “folha de sala” em conjunto. Ficou
assim:

Sinopse
Atravessar — a invenção de um percurso dançado pelo Bairro Celeiros
Um conjunto de ruas com uma determinada afinidade costuma fazer um bairro. A ideia deste bairro sonhado emerge de um celeiro que outrora armazenava trigo e agora armazena criatividade. O seu contorno é uma invenção, mas habitá-lo é real, tão real como comer pão. Os seus limites, desenhados com a fluidez e leveza da farinha, são porosos, permitindo a passagem das pessoas e das ideias.
Demarcadas as fronteiras, parte-se para a travessia interna, ocupando o território em movimento. Aqui, são os vínculos estabelecidos durante o processo criativo que definiram não só o trajeto mas também o ritmo, a forma e os gestos com que ele é percorrido. Das diretivas explícitas — «Bárbara, não vás por essa rua, porque aí há uma coisa má, vai pela outra que é mais bonita» — às suas histórias de vida e gestos, as senhoras que se reúnem todas as tardes junto ao n.o 26 da Rua dos Castelos inspiraram a dança que percorre as ruas desta travessia.
Fazem parte da paisagem sonora as canções da juventude que Dona Clotilde cantou, as benzeduras que Dona Custódia ensinou, os ruídos que a rua produz e a composição que os gestos e o ambiente sugerem.

Ficha técnica:
Criação e interpretação: Bárbara Faustino
Paisagem sonora: Ariel Rodriguez
Apoio à investigação: João Matias

Dia 8, 20 de maio

Manhã: Trabalho de criação e composição em estúdio. Ensaios de núcleos coreográficos
em sintonia com a paisagem sonora, ajustes de tempos e trabalho de sincronicidade entre
as camadas gestuais e sonoras — composição em conjunto, trabalho milimétrico entre eu e
Ariel. Chegada da Júlia Vilhena, que vai realizar o registo em vídeo do processo de criação.
Tarde: reunião de produção. Depois, ensaio em estúdio das cenas da Rua dos Castelos,
Rua dos Arcos, Fonte, Danças da juventude da Clotilde, Tv. das Pêras e Largo da
Misericórdia.
Na rua: captura do som do telefone público localizado no Largo da Misericórdia, para a
paisagem sonora. Encontro com dona Custódia, Joaquina, Lurdes e Clotilde. Conheceram a
Júlia, que perguntou se elas autorizam o registo do nosso encontro e elas disseram que
sim. Passamos mais um fim de tarde a falar sobre as suas histórias, memórias e medo da solidão. Este encontro todo final do dia é um lugar de partilha e de espantar sensações de
isolamento. Rir juntas é de uma força tremenda.

Dia 9, 21 de maio

Manhã — prática de aquecimento e sensibilização do corpo no estúdio. Trabalho com o
alguidar: estudo de encaixes para sustentar o seu peso em diferentes pontos de apoio do
corpo, exploração das suas possibilidades e equilíbrios. Definição do caminho narrativo do
alguidar dentro do percurso: caminhos em que estarei com ele, momentos em que estarei
sem ele. Estudo dramatúrgico da coreografia do percurso.
Rua (manhã) — ensaio do percurso com o alguidar cheio de farinha, nas ruas em que eu
estarei com ele. Durante este ensaio, também houve registo em vídeo e fotografias.
No regresso da rua, tivemos uma reunião com o técnico de som para acertar os detalhes
técnicos para a apresentação.
Ensaio e estudo da cena final com música, em estúdio. Estudo com Ariel focado na cena
final da performance.
Tarde — ensaio do percurso completo, sem o alguidar. Acompanhamento da produção, e
ajustes de detalhes logísticos para a apresentação.
Rua (tarde) — encontro com Custódia, Clotilde, Joaquina e Lourdes na Rua dos Castelos
para o nosso fim de tarde à conversa, partilha e companhia. A Clotilde disse que amanhã
vai mostrar fotografias de quando ela se apresentava a cantar no grupo coral. Amanhã, lá
estarei.

Dia 10, 22 de maio

Manhã — prática de treino e disponibilização do corpo em relação com a música, no
estúdio.
Ensaio na rua com a paisagem sonora nos auscultadores para perceção dos tempos,
acompanhada pelo Ariel. Tomamos notas para alterações e identificamos detalhes a ajustar
na relação entre a coreografia e a paisagem sonora.
Tarde — Trabalho em estúdio de ajustes na paisagem sonora na relação com a coreografia,
a partir das notas feitas no ensaio da manhã, na rua.
Surpresa da tarde: recebi a visita da dona Custódia e da dona Joaquina no espaço Celeiros!
Elas, que nunca haviam entrado lá, foram fazer uma visita. Passamos ótimos momentos a
conversar e a apresentar o espaço de ensaio e de trabalho da associação PédeXumbo. A
cadelinha Méli também foi!
Rua: ensaio do percurso com a paisagem sonora na coluna de som móvel para perceber a
sua potência. Chegada de conclusão da necessidade de uma coluna com maior impacto,
qualidade e volume para a performance.Depois, a convite da dona Clotilde, fui até à sua casa e ela mostrou-me fotografias da sua
juventude. Conversamos sobre o passado, o casamento, a família, a solidão, as nossas
histórias, a vida, os hábitos e a importância do convívio.
Noite: regresso para o estúdio, após o jantar, para continuação de ajustes na paisagem
sonora e ensaio técnico de som e dança.

Dona Clotilde a mostrar fotografias da sua juventude.

Dia 11, 23 de maio

Manhã — montagem da aparelhagem de som no pátio do espaço Celeiros e ensaio da cena
de abertura. Depois, ensaio do percurso com a paisagem sonora na nova coluna de som,
na rua.
Tarde — preparação do espaço para o ensaio geral e continuação da preparação das cenas
de abertura e da cena final.
ENSAIO GERAL COMPLETO para a equipa da Associação PédeXumbo e alguns
convidados.
Após o ensaio geral, houve partilha de impressões, ideias e conversa sobre a performance.

Dia 12, 24 de maio

Acordei muito emotiva, emocionada e feliz. De manhã, fiz um passeio pela cidade com o
Ariel, visitamos sítios por onde ainda não tínhamos passado, ficamos encantados com a
beleza de Évora.
Houve um almoço com toda a equipa. Eu não parava de pensar na sorte e na
responsabilidade de dançar aquelas ruas, dançar naquelas ruas, dançar com aquelas ruas.
Já começava a ter saudades de tudo, de todas as pessoas, de toda a intensidade criativa e
afetiva destes dias. Tudo estava muito vivo dentro de mim.
Fui até à cabeleireira Mena para fazer o penteado da apresentação, enquanto o Ariel foi ao
barbeiro Joaquim. Nos preparamos para a performance com a cabeleira e o barbeiro do
bairro, foi muito bom.
E então… Preparação, aquecimento, ansiedade, desejo de fazer tudo perfeito, medo de não
correr bem, e, num piscar de olhos, tudo acontece. ESTREIA. Foi lindo, foi emocionante, foi
vibrante, foi quente, intenso, foi inesquecível.

Dia 13, 25 de maio – Despedida

Terminada a residência, chegou o momento de deixar Évora, pelo menos por um tempinho,
já que eu quero e desejo regressar. Com o coração apertado, passei pela Rua dos Castelos
para me despedir da dona Custódia, da dona Clotilde, da Joaquina, da Lurdes, da Luísa e
da Maria. Foi emocionante despedir delas, chorei de alegria por ter podido aprender tanto,
trocar tanto em tão pouco tempo. Deixei o número do meu telemóvel com elas, tiramos
fotografias e nos abraçamos. Eu voltarei.

Um Projeto PédeXumbo | Bolsa «Dançar Ocupando o Bairro Celeiros» PédeXumbo | Estrutura Financiada por DGArtes, República Portuguesa – Cultura | Criação e interpretação: Bárbara Faustino | Paisagem Sonora: Ariel Rodriguez | Apoio à Investigação: João Matias | Mapa «Passo a passo, a caminhar pela Bairro Celeiros»’23 Colectivo Til |  Apoio Câmara Municipal de Évora, União das Freguesias de Évora (Centro Histórico de Évora) | Parceiros de Bairro Antípoda, a Bruxa Teatro, Grupo Cantares de Évora | Parceiro de Comunicação DianaFM | Imagem Cristina Viana | Vídeo Carolina Lecoq | Fotografia Júlia Vilhena, Joana Ricardo, Beatriz Nunes

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