“Em «LAETARE», que significa alegrai-vos, ponho memórias em cena!”
A atriz e criadora Lúcia Caroço foi a vencedora da Bolsa da PédeXumbo «Criações para Dançar» 2023 e tem estado em residência artística no Espaço Celeiros, para a criação de «LAETARE», uma performance que vai homenagear o Alentejo, a partir do reino coreográfico do típico “Baile da Pinha”.
Enquanto alentejana e artista emergente no território alentejano, e atualmente como doutoranda do Programa Doutoral em Criação Artística da Universidade de Aveiro, é na tradição que baseia a sua pesquisa e universo criativo! Estivemos um bocadinho à conversa com a Lúcia, durante o seu processo criativo, para saber de onde parte e de que nos fala «LAETARE»:
“Este projeto parte do universo do Baile da Pinha que me é muito próximo, enquanto alentejana que tem uma família que participa muito neste tipo de bailes. O Baile da Pinha tem andado um bocadinho desaparecido, mas eu lembro-me bem de participar e dançar quando era pequenina. Ao surgir esta oportunidade da Bolsa de Criação que a PédeXumbo lançou, lembrei-me quase de imediato do Baile da Pinha, porque é um universo muito rico, desde a coreografia, à cenografia – com a Pinha, as fitas, as luzes que saem de dentro da Pinha – e também é todo um momento ritualístico, essa abertura da Pinha -, até à brincadeira dos reis e das rainhas. Aqui, como em vários sítios, as pessoas vestiam-se mesmo e mascaravam-se.”
Mas é no ritual e na memória coletiva destes eventos, a que assistia e nos quais participava, na Casa do Povo dos Canaviais, que Lúcia Caroço se baseia para a criação!
Quero saber o “para além disso”. Este baile tem um material muito rico enquanto subtexto! O baile é uma coisa muito de comunidade, não é? Depende imenso da comunidade e desta existência da comunidade, que eu acho que está a desaparecer. Portanto, dramaturgicamente também tens um universo muito rico que fala desta divisão grande entre a comunidade e entre as gerações mais velhas, as mais novas e nós, que estamos aqui no meio, que ainda participamos quando eramos pequenos, mas que agora também já não temos esse interesse ou essa ligação, porque os bailes evoluiram para algo muito diferente dos que se faziam quando eu tinha 10 anos. E muito mais do que se faziam quando a minha avó, que tem 93, tinha 10 anos.
A relação de Lúcia com a dança começou desde criança, quando queria fazer ballet e dançava em casa, a imitar os bailarinos que via na televisão. Com o teatro, a ligação à dança fez-se pelo teatro físico, onde a dança surge como uma extensão da linguagem teatral. Mas foi na ida aos bailes do bairro, em família, que começou a ver na dança de pares, uma forma de pertencer a um movimento.
“Quando eu era criança, havia muitas crianças aqui da minha idade. E para além disso, nós já tínhamos irmãos e de repente era uma coisa muito geracional. E eu acho que isso é aquilo que me faz remeter aos bailes de forma tão feliz. Porque era uma coisa mesmo muito comunitária. Sabias que ias ao baile e que ia lá estar X Y e Z e que ias dançar com não sei quem, que ias ser visto como algúem muito fixe no bairro, que iam lá estar os teus pais, avós, primos, tios e os teus amigos.”
Nunca chegou a ser Rainha no Baile da Pinha, mas guarda uma gaveta cheia de fitas, onde estão também as memórias dos pares que teve, das danças que fez, da tradição passada pela sua avó, que lhe trouxe ainda o sentimento de pertença a um bairro, a uma comunidade a um território. Esta ligação que continua a trazer para o seu trabalho criativo.
Neste momento o meu trabalho, no geral, está todo muito focado nas tradições alentejanas. Eu estou a fazer um doutoramento cujo tema é esse: é pegar em tradições alentejanas – sendo que o baile da Pinha não é só alentejano – e transformá-las ou trazer o universo dessas tradições para uma linguagem mais contemporânea. Quando penso no Baile da Pinha, penso nas danças e no universo musical, por exemplo, a valsa da meia-noite, que é a valsa dançada pelos reis. E depois tenho o universo de trabalho de corpo, que pega na coreografia e a transforma. E depois tenho a dimensão dramatúrgica, que é o que dá a ligação a todos estes elementos. A partir desta ideia de identidade e de comunidade, o público poderá ser incluído na performance.
Desta vez as fitas conduzem memórias, ligam o passado ao presente e ao futuro. O Alentejo não escapa à sua história de vida, mas é também a partir da sua origem que cria. Com o total apoio da sua avó, e das suas experiências de vida, Lúcia propõe reinterpretar esta tradição quase perdida através de uma lente contemporânea, como forma ainda de aproximar os públicos.
Quando somos crianças não temos muita noção do sítio onde vivemos. Não o observamos na sua plenitude. E depois cresces e percebes “olha que bonito aquilo que eu fazia quando era pequenina e que já não existe”. Eu tenho a sorte de ainda ter a minha avó, que é uma grande influência na minha prática artística. O meu trabalho sobre as tradições é quase toda uma homenagem a ela. Ela lembra-se de todos os bailes da Pinha, dos tocadores de acordeão e de ser um evento a que toda a gente ia. Portanto, é um arquivo vivo e eu uso esse arquivo, essas memórias em cena, como forma de as eternizar de alguma maneira. Esta necessidade que eu sinto de trabalhar as tradições é também aquilo que eu posso fazer por elas, para que outras pessoas as vejam e não sejam só algo tão orgulhosamente nosso, mas que seja orgulhosamente de mais pessoas, que queiram fazer parte delas.
«LEATARE» de Lúcia Caroço tem estreia marcada para o primeiro dia do Festival Desdobra-te, dia 17 de novembro, às 21h30, na SOIR, em Évora.
A partir de dezembro, esta criação íntegra o Catálogo de Criações PédeXumbo em Viagem, proporcionando assim a difusão e promoção do trabalho de uma maior bolsa de artistas.
—
Lúcia Caroço (1997, Évora), é criadora e intérprete da performance “Laetare”. É atriz, performer e criadora, Licenciada em Teatro pela Escola de Artes da Universidade de Évora (2019) e Mestre em Artes Cénicas, Vertente de Interpretação e Direção Artística pela Escola de Música e Artes do Espetáculo do Politécnico do Porto (2021), atualmente é doutoranda do Programa Doutoral em Criação Artística da Universidade de Aveiro, em parceria com o Politécnico do Porto e o Politécnico de Leiria, onde desenvolverá uma investigação em que se propõe realizar atualizações estéticas de práticas culturais e tradicionais alentejanas. Foca o seu trabalho no corpo do ator enquanto ponto de partida e de chegada do processo de criação e performance ao vivo. Iniciou o seu percurso no Teatro Amador em 2012, a partir dessa data foi construindo o seu percurso nas artes performativas, focando os seus últimos trabalhos numa exploração das artes performativas em total harmonia com as restantes artes, nomeadamente a música, a literatura e a dança. Fazendo, também, uso das suas valências enquanto dramaturga escreve textos cénicos originais, “FLORISCÓPIO” (2021) e “O QUE VIER” (2019). É fundadora da CALCANHAR D’AQUILES ASSOCIAÇÃO CULTURAL. Salientam-se no seu percurso os nomes de Teresa Brayshaw, Sara Carinhas, Gonçalo Amorim, MALVADA ASSOCIAÇÃO ARTÍSTICA de Ana Luena e José Miguel Soares, Telma João Santos, Joana Manuel, Inês Nogueira, João Lagarto, Margarida Gonçalves, Ana Mira, Trimagisto, e.o.