Vídeo Pavel Tavares
Valsas Mandadas com Ana Silvestre, no Centro de Artes de Sines
Fotografia Sofia Costa
Bailes Mandados com Mercedes Prieto, em Ponte da Barca
Fotografia Pavel Tavares
Fado Mandado com Marisa Barroso, na Lousã
Fotografia Pavel Tavares
DE VOLTA AOS BAILES MANDADOS EM PORTUGAL: A Festa, Campinho, Reguengos de Monsaraz
Fotografia Pavel Tavares
PROJETO E ARTIGOS
De volta aos Bailes Mandados em Portugal é o novo projeto da PédeXumbo e é um dos dez vencedores da 4ª edição do programa “Tradições”, promovido pela EDP.
O Programa Tradições é uma iniciativa de financiamento e acompanhamento de projetos que tenham como objetivo valorizar tradições regionais ou locais em Portugal. Assim, no passado dia 10 de março foram divulgados os vencedores desta iniciativa, numa gala que decorreu online, onde esteve presente a Marta Guerreiro para falar deste novo projeto da PédeXumbo. De volta aos Bailes Mandados em Portugal surge com o objetivo de promover momentos de partilha entre bailadores e mandadores de diferentes danças mandadas, em três regiões de Portugal (a norte, centro e sul do país), no sentido de resgatar esta prática informal em bailes e promover a sua valorização. Este projeto visa ainda a valorização do papel dos mandadores e a importância de formar novos mandadores nas diferentes comunidades.
De volta aos Bailes Mandados em Portugal será desenvolvido ao longo de cerca de dois anos e terá uma dimensão teórica para a criação de conteúdos, com a coordenação cientifica de Sophie Coquelin, Marta Guerreiro como responsável executiva da entidade promotora e gestora do projeto e uma dimensão prática com as formadores Ana Silvestre, Marisa Barroso e Mercedes Prieto
FORMAÇÕES E ENCONTROS
Até ao final do ano 2022 este projeto terá momentos de partilha entre bailadores e mandadores de diferentes danças mandadas em três regiões de Portugal: Sines e Reguengos de Monsaraz no Alentejo, Ponte da Barca no Norte e Lousã no Centro. As formadoras Ana Silvestre, Mercedes Prieto e Marisa Barroso estão dedicadas às práticas coreográficas integradas no projeto: Baile da Pinha/Contradança em Reguengos de Monsaraz; Fado Mandado, na Lousã; Vira/Chula/Malhão mandados, em Ponte da Barca; e Valsa Mandada, em Sines.
Durante o ano haverá encontros em cada um dos concelhos, onde o papel das formadoras será o de se focarem na prática coreográfica de cada concelho, revê-la, ensiná-la, adaptá-la e motivar o aparecimento de novos mandadores, capacitando as comunidades para dinamizarem bailes no futuro e outras atividades em torno deste tipo de dança.
Para além destes encontros, o projeto prevê ainda o convívio com as comunidades e associações locais, a participação na vida cultural dos concelhos e ainda a procura de testemunhos e fontes (escritas, audiovisuais ou fotográficas) que permitam documentar estas danças.
MARTA GUERREIRO
responsável executiva da entidade promotora e gestora do projeto
Licenciada em Animação Sociocultural pela Escola Superior de Educação de Beja (2005), Marta Guerreiro dedicou-se inicialmente à área social, desenvolvendo e dinamizando projectos em contextos sociais desfavorecidos, recorrendo sempre à dança como ferramenta de trabalho. A partir de 2008 dedicou-se à área cultural como produtora e programadora na associação PédeXumbo (Festivais Entrudanças, Tocar de Ouvido, Planície Mediterrânica). Em simultâneo cria e integra projectos artísticos com comunidades locais (idosos e crianças) e tem ainda desenvolvido competências enquanto monitora de danças tradicionais. Desde 2015, coordena a associação e gere projectos, tendo sempre um papel activo na implementação e dinamização das actividades nos diferentes territórios de intervenção. O último projecto criado por Marta centra-se na tradição dos mastros e nas suas práticas expressivas, no concelho de Odemira. Neste projecto, como em outros que tem desenvolvido ao longo do seu percurso profissional, integra-o desde a fase de pensamento/criação à de avaliação. Faz parte do seu perfil envolver-se junto das comunidades locais, onde ainda se praticam as acções, e por tal valorizar as pessoas e as tradições de uma forma muito humana. Esta integração a 100% nos projectos permite-lhe gerir orçamentos e recursos humanos de uma forma complementar para o bom sucesso dos projectos. Na função de coordenadora da associação, gere uma equipa de quatro funcionários a tempo inteiro, assim como planeia a contratação de serviços externos para os diversos projectos que integram os planos de acção anuais. Participa na valorização do voluntariado (mais de 200 pessoas no Festival Andanças) e é quem estabelece a comunicação entre a Direcção da associação, colaboradores e parceiros. Nos últimos 5 anos, tem gerido um orçamento médio de 400.000 euros; realizado candidaturas a apoios nacionais e europeus e representa a associação em encontros e seminários dedicados ao âmbito cultural nacional e internacional, a titúlo de exemplo “Culturminho, o 1º Fórum da Cultura do Rio Minho Transfronteiriço“. No intuito de se qualificar na área do património cultural imaterial, finalizou ainda uma pós-graduação, ministrada pela Universidade Lusófona (2015).
Na área da sua formação como monitora de dança/movimento frequentou vários cursos, tendo tirado a Formação de Formadores de Dança, com a professora/bailarina Mercedes Prieto. É pós-graduada em Contextos Educativos pela Faculdade de Motricidade Humana com a coordenação da Professora Doutora Elisabete Monteiro e Margarida Moura. Fez ainda a formação O Corpo que Pensa, no Espaço do Tempo, orientada pela Terapeuta e Bailarina Pia Kraemer M.A. Marta Guerreiro procura implementar um modelo de gestão integrativo que concilie a gestão financeira à de recursos humanos, com a capacidade de um pensamento estratégico e em simultâneo artístico.
SOPHIE COQUELIN
coordenação científica
Licenciada em Etnomusicologia pela Universidade Paris-X-Nanterre (França, 2004) e Mestre em “Ethnologie des Arts Vivants” pela Universidade Nice Sofia-Antipolis (França, 2013), Sophie Coquelin investiga os processos de revitalização da dança de raiz tradicional em Portugal. Graças a uma bolsa de doutoramento obtida pela reitoria da Universidade de Lisboa, iniciou em 2017 um doutoramento em Motricidade Humana, especialidade de Dança, na Faculdade de Motricidade Humana. Com esta bolsa pretende aprofundar o entrosamento entre a Antropologia e a Arte, abordando a questão da multimodalidade na “dança mandada”. Na interface entre o mundo académico e sociedade civil, a sua experiência profissional decorreu na Associação PédeXumbo enquanto produtora cultural (2006-2011; 2012-2014), no Institut Occitan d’Aquitaine como assistente do etnomusicólogo Jean-Jacques Casterêt (2011-2012). Entre 2014 e 2017, teve uma bolsa de investigação para Mestre no centro de investigação INET-md, polo FMH-UL. Participou em iniciativas de registos etnográficos no Alentejo, no Algarve e nos Açores; e na organização de arquivos sonoros e visuais (bases de dados Ibn Battuta de La Maison des Cultures du Monde; Sondaqui do Institut Occitan d´Aquitaine; A Dança Portuguesa a Gostar Dela Própria de Tiago Pereira e PédeXumbo; Terpsicore do INET-MD). Foi consultora em Etnomusicologia para o filme Sinfonia Imaterial de Tiago Pereira, editado pela Fundação INATEL, e consultora em Antropologia para a criação Fica no Singelo da Cia de dança Clara Andermatt.
MERCEDES PRIETO
formadora
PhD em Ciências da Educação pela Universidade de Évora. Licenciada em Dança pela Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa e em Química pela Universidade de Santiago de Compostela. Formadora certificada pelo CCPFC na área das expressões (C05 Dança). Integra a equipa de especialistas do Programa de educação Estética e Artística do Ministério de Educação no âmbito da formação de professores. Também leciona diferentes formações noutras instituições como Câmaras Municipais e associações, Sindicato dos professores do Sul, CEFORE(Espanha) ou a JOBRA. Trabalhou na escola Superior de Educação de Beja como professora de dança formando animadores socioculturais e professores de educação infantil e primeiro ciclo. É animadora artística no projeto MUS-E para o qual deu aulas a crianças do primeiro ciclo e jardim de infância. É fundadora e coordenadora pedagógica na “Associação PédeXumbo”, associação para a defesa e divulgação da música e dança tradicional. Co-autora do projeto MatDance, para o ensino e aprendizagem da Matemática e da Dança. Co-Autora das publicações de dança: Zampadanças, Pezinhos de lã e Entroidanzas. Coreógrafa e intérprete na peça “Olladas da danza” criada para o Museo do Pobo Galego. Bailarina nos projectos de dança GS21 e Bruma. Mandadora de bailes em projetos de música folk como Monte Lunai, Pesdelán e Obal; no Baile dos Corpos Extraordinários, Baile dos Gordos de Diana Regal e atualmente no baile do Zampadanças e Baile histórias da Associação PédeXumbo assim como no baile de Fica no Singelo da Cia Clara Andermatt.
ANA SILVESTRE
formadora
Psicóloga e Professora de Danças do Mundo com vasta experiência no trabalho de movimento com diferentes faixas etárias. Ao longo do seu percurso tem integrado projectos sempre ligados às expressões artísticas, desde o pré-escolar, ensino básico (trabalho pedagógico com comunidades vulneráveis), até à idade adulta. Como Psicóloga trabalhou nos últimos dois anos na área da Intervenção em Crise, com crianças e jovens em contexto de Violência Doméstica em Casa Abrigo. É Técnica de Apoio à Vítima, tem formação em Igualdade de Género, e é Colaboradora Assistente na Universidade de Évora com a disciplina de Psicologia e Corporeidade.
Co-criadora em projetos como o Baile das Histórias (uma co-produção Casa das Histórias Paula Rego e PédeXumbo); Bail`A Rir, Era Uma tela em Branco e Mandadora de baile no grupo Folk Aqui Há Baile. Integra o elenco da ACCCA (Companhia Clara Andermatt) no espectáculo Fica no Singelo como Formadora e Mandadora de Danças Tradicionais Portuguesas. Desenvolveu Projecto Inclusão em Movimento, com pessoas portadoras de deficiência desenvolvido pela C.M.E. Colabora com a Associação Pédexumbo desde 2006, como monitora de Danças Tradicionais do Mundo, como dinamizadora de oficinas e formação de formadores na área das Danças Tradicionais. Desenvolveu trabalho como Artista MUSE-pe (projecto da Fundação Menuhin e Projecto Escolhas), com a actividade artística Dança e Movimento com grupos do pré-escolar e ensino básico.
MARISA BARROSO
formadora
Professora de dança na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, onde tem investigado sobre danças tradicionais e populares, considerando-as portais de empatia e poderosos instrumentos de inclusão social. Lidera o projeto “ALL DANCE” , no qual promove a atividade física e a dança como veículo de partilha de culturas e valorização da diferença. Acredita que a dança tem o poder de fazer rodar um novo mundo. Atualmente está a desenvolver um projeto de Salvaguarda das Danças Portuguesas com a Federação de Folclores Português , tendo iniciado com um programa piloto de formação técnica de dança no concelho de Porto de Mós do distrito de Leiria.
Bailes Mandados em Portugal
O Projeto «De volta aos Bailes Mandados em Portugal» da Associação PédeXumbo procura valorizar a figura do mandador na dança tradicional em Portugal, com o apoio da Fundação EDP, através do seu Programa Tradições. Foram escolhidas quatro práticas expressivas distintas – o Fado Mandado; o Vira, a Chula e a Cana Verde; a Contradança no Baile da Pinha; a Valsa Mandada – e quatro concelhos de Norte a Sul do país: Lousã, Ponte da Barca, Reguengos de Monsaraz, Sines.
O desenvolvimento de uma oferta formativa em cada concelho está precedido de pesquisa que contextualiza cada prática no respetivo território. Cada um dos artigos apresentados aborda outros temas, associados à dança tradicional.
Com a Contradança no Baile de Pinha, procuramos destacar a ligação entre uma dança e o seu contexto de execução. Neste caso, a Contradança sublinha a dimensão ritual de que se pode revestir o baile e que vai para além da dimensão social que geralmente lhe reconhecemos. Procuramos também refletir sobre as noções de tradicional e popular, mostrando como uma prática coreográfica vista como antiga é executada ao som de música do presente. Com as danças mandadas no Minho – Vira, Chula e Cana Verde – abordamos a questão da folclorização e da patrimonialização do imaterial. E destacamos a obra de Pierre Sanchis sobre as romarias em Portugal, em particular o lugar que a dança tinha no passado. Com a Valsa Mandada introduzimos as danças a par que sucederam, e por vezes se fundiram, com a contradança. Foi este o momento escolhido para mostrar o trabalho que a PédeXumbo tem feito ao longo de quase 15 anos na sua salvaguarda. Por fim, com o Fado Mandado reafirma-se a ligação forte entre música e dança quando estamos a falar do contexto bailatório. Além disso, procuramos demonstrar como as práticas expressivas evoluem ao longo do tempo e do espaço. O conceito de labilidade é, a nosso ver, central para descrever o que se entende por tradição, algo que muda no tempo, mas que podemos reconhecer como idêntico.
Precedendo os artigos dedicados a cada uma das práticas, introduzimos alguns dados gerais sobre a figura do mandador na dança tradicional.
A FIGURA DO MANDADOR NA DANÇA TRADICIONAL
Um mandador é alguém que indica, com o recurso da sua própria voz, o que os bailadores devem executar. Eis dois elementos essenciais: a voz e o movimento. As indicações passam pelo recurso à linguagem, mas podem incluir alguns sons sem significado (apito, grito). Tal pressupõe que os bailadores detêm um conhecimento prévio do que cada expressão/som anunciado significa ao nível do movimento. Existem vários graus de codificação possíveis. Nalguns casos o “mando” ou “marcação” é literal, como por exemplo “Vira” ou “Mãos ao ar”, noutros o sentido não é diretamente acessível, tal como “Desmancha a mulher à esquerda” ou “Quebra o torreão”.
A verdade é que a figura do mandador varia consoante a prática coreográfica que integra. Por exemplo, a ordem dos mandos pode ser a priori fixa ou ser indefinida. No primeiro caso, o mandador auxilia a memória dos bailadores para não haver engano na coreografia. No segundo caso, assistimos a uma negociação entre previsibilidade e imprevisibilidade. Os bailadores precisam estar atentos para saber o que terão de realizar a seguir. Em termos sociais, podemos falar em baile mandado mais inclusivo ou mais exclusivo. Em alguns casos, temos uma dança coletiva em que todos podem dançar, noutros, só quem sabe o significado dos mandos é que pode dançar. O carácter exclusivo pode ir longe: tal como explicou o Senhor Venâncio, quem se enganava na Valsa Mandada, tinha de sair da roda imediatamente. Esta prática beneficia os residentes sobre os forasteiros.
O baile mandado pode ser o lugar para a invenção de mandos ou a criação de novas sequências coreográficas. Ainda assim, existe sempre um enquadramento com convenções partilhadas implicitamente. De resto, qualquer tipo de dança implica um conjunto de normas que organiza os bailadores entre eles. No caso da Contradança no Alentejo, a sucessão de figuras coreográficas pressupõe que cada bailador regressa à sua posição inicial no grupo de bailadores, antes de iniciar uma nova figura. As normas também podem influenciar a altura em que se introduz um novo mando. Na Chamarrita (Açores), o mandador não pode escolher um mando à sorte, mas em cada momento tem sempre a possibilidade de escolher entre vários mandos. Os constrangimentos resultam da posição na qual se encontram os bailadores e da figura imediatamente antecedente.
Entende-se portanto que o mandador precisa ter um conhecimento consolidado da prática corporal em questão. Deve saber antecipar, uma vez que o anúncio da figura precede a sua execução. Deve ter uma boa projeção de voz para ser entendido pelos bailadores, mas também deve saber comunicar, cativar e animar o grupo de bailadores. Não se trata apenas de dar ordens ou relembrar algo já conhecido. A performance vocal do mandador pode ainda implicar talentos musicais e poéticos, como acontece com frequência no Baile Mandado no Algarve, onde o mandador quase parece um cantor de hip-hop (Sugerimos ouvir o mandador algarvio Henrique Bernardo Ramos (1902-1977)). E talvez não seja por acaso que ele não está junto dos bailadores, mas ao lado dos tocadores. Em Portugal, é caso único, já que por norma o mandador é ao mesmo tempo bailador.
Como se vê, não é possível apresentar apenas um perfil de mandador. Para entender como a figura do mandador surge, vamos introduzir alguns dados sobre a contradança. Para além de ser este o primeiro género coreográfico à escala global, é no seu seio que a referência ao mandador aparece primeiro na historia da dança social europeia.
A CONTRADANÇA COMO GÉNERO COREOGRÁFICO GLOBAL
Definir o que é uma contradança é tarefa árdua. Pensando na questão da origem, existem duas fontes distintas (a corte inglesa e a corte francesa) e uma multitude de apropriações e adaptações em todo o mundo, uma vez que este género coreográfico se caracteriza por um conjunto de danças inventadas ou adaptadas ao longo de 250 anos (1650-1900). A título de exemplo, na página wikipedia da contradança na Escócia fala-se em 15000 danças distintas. Este fenómeno atravessa todas as classes sociais, da aristocracia aos escravos em tempos coloniais (Khatile, 2005), dos urbanos aos rurais (Guilcher, 2004). A difusão nos cinco continentes deve ser entendida à luz da mobilidade acrescida que se fez sentir nos séculos XVIII e XIX. Existem movimentos migratórios importantes, em particular da Europa para as Américas, em que as pessoas levam as suas vivências para o local de chegada. Por outro lado, as elites viajam e seguem a moda e etiqueta comportamental então ditada pela cultura francesa. Os empregados domésticos assistem aos encontros mundanos, ficando a conhecer estas novas práticas expressivas e difundindo-as. Investigar a contradança é também complicado porque existem numerosas formas de nomear este género. Além da sua tradução – country dance, contredanse, contra dancing – existem muitos outros termos usados, tal como quadrille, cotillon, square dancing, ceilidh dance, Scottish country dance, Irish set dance. Esta variação não reflete apenas tradições nacionais. Por exemplo, num mesmo país podem ser usados vários termos, como acontece em Portugal (contradança e quadrilha).
Quanto à performance em si, Guilcher (2004) define este género coreográfico a partir de duas características: o facto de privilegiar as relações interpessoais entre os bailadores e o facto de valorizar as deslocações em detrimento dos passos. Traduzindo esta ideia numa imagem, podemos compará-la a uma visão caleidoscópica. Observando os pares a dançar de um ponto de vista omnisciente, aproxima-se de um objeto geométrico composto, em 3D e em movimento, implicando jogos de simetria e alternância entre curvas, linhas, círculos, quadrados, espirais, etc. Aprofundar a caracterização deste género torna-se quase impossível. De facto, existe bastante variação quer na formação espacial (duas linhas, cortejos, roda de pares, roda dupla, quadrilha, etc.), quer nos tipos de passo.
No que diz respeito à adaptação ou invenção de danças, importa realçar a figura do mestre de dança. Este ensina as coreografias às elites, realiza a notação gráfica de cada dança e publica tudo sob a forma de tratado ou manual de dança. Mas o mais importante é que o mestre de dança também inventa novas danças. Para isso, tem acesso a um conjunto de figuras coreográficas que podem ser combinadas de diferentes formas. Pode inventar novas figuras, simplificar ou complexificar antigas contradanças, ou criar novas sequências de figuras; alterar o tipo de música associado a uma contradança; ou ainda introduzir adereços (lenço, arcos, flores) para enfeitar a performance. A inovação parece ser constante. Na sua tese dedicada à contredanse, Guilcher (2004) mostra como se passa da contredanse à quadrille por alterações sucessivas, através de processos de fixação, simplificação e encurtamento da coreografia. Hoje a quadrille francesa faz referência à seleção de cinco contradanças distintas, cada uma com uma sequência de figuras específicas.
A nível musical, a contradança não possui limitações, senão a de garantir que a estrutura rítmica e métrica seja adequada a determinada dança. Assim, o ritmo da valsa pode ser usado para dançar uma contradança. A título de exemplo, na Escócia, existem três tipos distintos de contradanças consoante o acompanhamento musical (reel, strathpey e jig).
As descrições que incidem sobre a contradança fazem menção da existência de um mandador a partir do fim do século XVIII. Guilcher (2004) fala da criação de pot-pourris, danças que juntam várias contradanças e figuras já conhecidas, sendo que a sucessão destas é definida por um par que lidera o grupo de bailadores. Aqui parece que o par exemplifica mais do que anuncia os passos a executar. Porém, podemos imaginar que os mestres de dança recorriam à verbalização das figuras durante as aulas que ministravam. Assim, não é descabido pensar que um bailador terá também a possibilidade de anunciar verbalmente as figuras e não só exemplifica-las. A pergunta seguinte é: como ou porque é que esta verbalização sai do contexto formativo para o baile? A verbalização e consequente criação da figura do mandador surge, a nosso ver, aquando da multiplicação e complexificação das coreografias, tornando-se difícil decorar as sequências de figuras de cada uma das danças. Neste contexto, o mandador tem como função auxiliar a memória dos bailadores, já que a coreografia é fixa. Num movimento inverso, a simplificação das coreografias pode levar ao desaparecimento do mandador, tal como o analisou Sparling (2018) numa região do Canadá.
Temos aqui duas valências distintas, o mandador que ajuda a lembrar uma coreografia predeterminada e o mandador que cria uma coreografia no momento da performance, a partir do conjunto de figuras já conhecidas. A nosso ver, esta segunda valência pode ser associada ao desenvolvimento da primeira. Na primeira situação, trata-se de respeitar algo já definido e mostrar que se consegue executar uma determinada coreografia. Na segunda situação, o bailador deve demonstrar que domina as convenções associadas à contradança. O desafio torna-se maior face à indeterminação.
Com estas duas figuras de mandador, a dinâmica na pista de dança varia. Na primeira situação, a criatividade individual pode ter maior expressão e a dinâmica com o par é importante. Nota-se neste canal youtube onde se vê várias Square Dance nos Estados Unidos, e mais ainda no vídeo deste Contra Dancing. Os bailadores introduzem variações individuais e ao mesmo tempo respeitam a coreografia. Na segunda situação, a criatividade individual também existe, mas é mais condicionada. Aqui o desafio é outro, e as atenções estão mais focadas no mandador do que no seu par. A título de exemplos, esta variação individual surge com a introdução de pequenas piruetas na Chamarrita picoense e com a introdução da técnica sapateada na Valsa Mandada.
Antes de acabar, precisamos de esclarecer a ligação entre a contradança enquanto género coreográfico e as quatro práticas expressivas deste projeto. No caso da Contradança no Baile da Pinha, basta a homonímia. Para o Fado Mandado, reconhecemos as figuras da contradança, tal como o cesto, os arquinhos, a figura do oito, etc. No caso da Valsa Mandada, a ligação parece menor. No entanto, a contradança coabita com as danças a par ao longo do século XIX. Além disso, existem registos sobre a inserção da valsa na contradança. Neste caso, a contradança corresponde ao evento em si, uma noite com a sucessão de determinadas danças, selecionada por um mestre de sala. A nosso ver, a Valsa Mandada é uma combinação entre uma valsa, enquanto dança a par, e princípios de organização coletiva da contradança. Por fim, para as danças mandadas no Minho, mantém-se a ideia de partilhar os princípios de organização coletiva da contradança, baseada numa dinâmica de grupo e com o par. Porém, para entender melhor a forma como estas danças possuem alguma influencia da contradança, é preciso olhar para todo o repertório bailado naquela região. Nos Viras, Chulas e Canas Verdes executadas pelos grupos folclóricos sobressaem uma variedade de formações espaciais, entre outras a quadrilha, as duas linhas, as rodas de pares, etc, onde reconhecemos as tais figuras da contradança, tal como referidas para o Fado Mandado.
Podíamos abrir esta listagem a outras danças mandadas em Portugal. As figuras da contradança e os princípios de organização coletiva estão presentes no Baile Mandado algarvio, tal como nos Bailes Regionais, Chamarritas nos Açores e, na zona do Douro Verde, nas danças: Contradança, Quadrilha e Baile Mandado (Queirós et al, 2021). No caso desta Contradança bailada em Cinfães, a formação espacial em quadrado, com dois pares para cada lado, encontra-se em numerosas danças, seja em Cabo Verde (Contradança), nos Estados Unidos (Square Dance), como podemos encontrar no livro The English Dancing Master publicado por John Playford em 1651.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um baile mandado pressupõe que haja um grupo de bailadores animados para dançarem juntos seguindo a voz de um mandador. Para garantir o funcionamento do grupo, o mandador deve ter um conhecimento aprofundado da dança em questão e, de uma certa forma, deve aceitar entrar neste personagem que muitos olham com respeito. Em algumas situações, terá de aceitar ser desafiado por outros mandadores, aumentando a teatralidade deste tipo de baile.
Sinal dos tempos, a figura do mandador, inicialmente apenas do género masculino, hoje está a ser incorporada por mulheres em Portugal. Esperemos que este projeto proporcione a oportunidade, a quem o desejar, de experimentar realizar o papel de mandador do baile.
Bibliografia
Guilcher, J. M.(2004). La contredanse : un tournant dans l’histoire française de la danse. Bruxelas: Centre National de la Danse.
Khatile, D. (2005). Anthropologie de la contredanse à la Martinique. Tese de doutoramento não publicada, Universidade Paris VIII.
Queirós, H., Monteiro, L. & Leite Castro, D. (2021). Contradanças e quadrilhas durienses. Porto: U.Porto Press.
Sparling, H. (2018). Squaring off: The forgotten caller in Cape Breton Square dancing. Yearbook for Traditional Music, 50, 165-186.
O Fado Mandado na Lousã
Fado e Dança Social em Portugal.
Hoje parece bastante antinómico associar o fado à dança. De facto, o fado é geralmente considerado como uma prática musical, vocal e instrumental, mas sem estrutura rítmica marcada. No entanto, o fado pode ser dançado e foi o que aconteceu no Brasil, no século XIX. As primeiras menções da palavra fado enquanto género musical situam-se naquele país e associa a música à dança. Nas referências encontradas em Portugal continental posteriormente, também existe alguma ligação.
A palavra fado acaba por cobrir vários tipos de práticas expressivas, que hoje coexistem, no seio dos Grupos folclóricos, nas Casas de Fado, durante bailes ou cantorias ao desafio. Se existe alguma ligação histórica entre elas? Não sabemos ao certo. Hoje preocupamo-nos muito com a forma como nomeamos e identificamos tal ou tal prática / todas as práticas. Mas talvez os antepassados não tinham o mesmo fervor em distinguir práticas e criar categorias.
Aqui também não será o lugar para debater sobre a origem do fado. Vários historiadores já o fizeram e cada um de nós terá a sua preferência. Optamos aqui pelo texto introdutório da candidatura do Fado de Lisboa à lista da UNESCO, para o Património Cultural Imaterial. E neste acaba-se por conciliar diferentes versões:
“[O Fado] constitui uma síntese multicultural dos bailes cantados afro-brasileiros, de géneros tradicionais de música e dança locais, de tradições musicais das zonas rurais do país trazidas para a cidade pelas sucessivas vagas de imigrantes, e de correntes de canções urbanas cosmopolitas do início do século XIX.”
Vamos agora nos concentrar nas práticas do fado executadas longe dos palcos da world music ou das Casas de Fado. Primeiro, vamos para os Açores!
DOIS FADOS “CASTIÇOS”: FADO MENOR E FADO CORRIDO
Em 1956, o etnomusicólogo francês Gilbert Rouget gravou vários fados na Ilha do Faial, cantados por José Pacheco, baleeiro de origem micaelense, que se companhava da guitarra portuguesa ou do bandolim. Segundo um tocador picoense de renome, Manuel Canarinho, cantava-se muito o fado maior e o fado menor nas ilhas do triângulo! Estes dois distinguem-se consoante o uso na música do modo maior ou o modo menor. De resto, as letras eram ora improvisadas no momento, ora decoradas. Podiam relatar momentos marcantes da história local, tal como este fado menor que conta a história da morte de Zé Toninho durante a caça à baleia. Rouget gravou outro fado menor com o José Pacheco. Nesta versão com quadras improvisadas, este saúda o etnomusicólogo e deseja-lhe um bom regresso à França.
Hoje em dia há um fado que ainda se baila! Na ilha de São Jorge, os bailes regionais são compostos por chamarritas e por bailes de roda: saudade, tirana (…) e o fado menor! Tal com os outros bailes de roda, este fado é mandado por um dos tocadores que se encontra na pista de dança e as quadras cantadas surgem pelas vozes dos bailadores.
O fado menor não é o único que pode ser dançado, o fado corrido também o é. O balho furado em São Miguel é associado ao fado corrido porque possui o mesmo padrão de acompanhamento. (Gaipo, A.& Brito da Cruz, C. in Enciclopédia da Música Portuguesa no Século XX, 2009.) e além disso é mandado, ou seja, um dos tocadores de viola anuncia as figuras coreográficas a executar. No balho furado pode também haver lugar de despique entre cantadores. Esta ligação entre o fado e a desgarrada não se reduz aos Açores, também surge em Portugal continental, em particular no Norte e no Centro. Deixamos aqui uma linda versão instrumental da autoria do Conjunto de Guitarras de Raúl Nery.
A situação que encontramos nos Açores é bastante distinta das referências temporais dadas pelo Rui Nery, no que toca ao fado em Lisboa. O musicólogo afirma que a associação deste à dança desaparece progressivamente depois de 1850. Além disso, assume que a fixação das letras e da melodia se torna predominante nos fados cantados a partir dos anos 1920-30. Duas regiões, duas dinâmicas diferentes, o que nos leva a supor que a dinâmica seja diferente nas outras regiões de Portugal.
O FADO BATIDO
Além do fado menor e do fado corrido Nery introduz outro tipo de prática com componente coreografada associada aos fados executados nas tabernas lisboetas, em meados do século XIX: o fado batido. Trata-se de uma performance ritmada “por batimentos dos calcanhares no chão e por movimentos ondulantes dos quadris” (Nery, 2012, p.91-92), fazendo lembrar o sapateado que é geralmente associado ao fandango. Também cita Pinto de Carvalho que descreve o fado batido na viragem para o século XX. “Bater o fado é uma dança ou meneio particular em que entram duas pessoas ou três: uma que apara e que deve estar quieta e o mais firme possível, e a outra que bate, dando regularmente pancadas com a parte inferior das coxas nas coxas das pernas do que apara, e meneando-se com requebros obscenos”. (Nery, 2012, p.92, citando Carvalho, 1903, p. 276). Neste caso, faria mais lembrar cenas de tauromaquia, alias, é o que sugere a caricatura de Bordalo Pinheiro “O fado da política”, publicada a 5 de abril 1883 no jornal O António Maria.
O que temos hoje em Portugal continental?
Olhando para o repertório dos grupos folclóricos, encontramos tanto a versão sapateada, como a versão toureada do fado batido. Muitas destas versões são adaptações cénicas,e no caso desta versão toureada trata-se de uma roda de homens com braços erguidos e não de dois ou três elementos como descreve Pinto de Carvalho. Sem conhecer o contexto no qual este outro fado batido foi filmado, encontramos no Youtube um vídeo que reproduz esta luta entre homens num café.
Os instrumentos usados para tocar o fado batido não abrangem apenas guitarras e acordeão/concertina, encontramos versões tocadas ao violino, à flauta e à gaita de foles.
NOMEAR E CATEGORIZAR: UMA QUESTÃO DE DISTINGUIR O QUE?
Quer seja o fado batido como o fado mandado, todos os fados acompanhados por dança possuem o mesmo padrão rítmico, o do fado corrido! Ao nível do passo-base, pode ser caracterizado como a sucessão de três passos/apoios e uma elevação do calcanhar/salto, prefigurando uma estrutura binaria de tipo 2/4. Mas existem bastante variações, tanto ao nível coreográfico como musical! Nesta pesquisa conseguiu-se encontrar uma versão do fado batido com duplo padrão rítmico: o do fado corrido e o da chula.
Com todos os exemplos encontrados e aqui apresentados consegue-se abranger a maioria do território português, à exceção do Alentejo e do Algarve (Mas será o Youtube representativo da realidade?). No que toca ao Minho a versão cantada à desgarrada ainda é bastante vivida hoje, e a versão dançada do fado nem tanto. Como chegar a esta generalização? Partindo do princípio que existem várias formas de nomear o mesmo: fado corrido, fado batido, fado velho, fado passado e batido, fado beirão, fado serrano, fado mandado, e fado de específicos de autores, vilas ou cidades, como por exemplo “fado de Montemuro” ou“fado de Ze Maria”. A lista é longa e nem se está a contar com os exemplos presentes no terceiro disco do livro “A Origem do Fado” de Sardinha, que gravou fados corridos, alguns com nomes indicando outras danças, tais como checote, chula ou ainda chotiça. Este autor justifica isso assumindo algum parentesco entre a chula, o fado e até o corridinho. Também explica que dançar fado seria uma expressão genérica para um número variado de danças com par agarrado.
Afinal, parece que nomear permite pôr em destaque uma das valências do fado: o seu carácter plural: bailado, mandado, batido (sapateado/toureado), cantado e tocado, cantado à desgarrada e/ou tocado em modo menor. Nada é exclusivo no fado, sendo este muito plural. Com efeito, é possível cantar à desgarrada num fado em modo menor, tal como é possível encontrar um fado mandado, acompanhado com canto à desgarrada. Pode se bailar um fado corrido sem haver mandador e este nem ser sapateado ou toureado. Neste caso, talvez seja importante referir que acontece sobretudo em contexto folclórico, em que o mandador foi substituído por uma coreografia fixa, para facilitar a performance cénica. A desgarrada executada pelo NEFUP, inspirada pelo repertório do Grupo Folclórico de Ílhavo, é um bom exemplo disso.
Enfim este exemplo de fado corrido ilustra uma coreografia sem recurso a passos sonoros por parte dos bailadores. Será talvez isso que permite distinguir o fado corrido do fado batido?
O FADO MANDADO
Outro elemento até agora não introduzido é a velocidade na qual a música é tocada, nesta área também existem bastantes variações. No caso do fado mandado, os exemplos encontrados no Youtube têm um andamento bastante moderado comparado com o fado batido. Estes fados mandados concentram-se sobretudo na região de Coimbra. Ainda assim, estão presentes nos dois lados da Serra da Estrela, tanto em Gouveia, Seia como no Fundão, Oleiros ou ainda Castanheira de Pera. A associação do fado mandado à serra parece relevante, na medida em que o fado serrano é outra forma de nomear este fado de andamento mais lento, incluindo a presença de um mandador entre os bailadores.
Com a análise dos vídeos encontrados no Youtube, infelizmente, torna-se complicado ouvir a voz do mandador, sobretudo por questões sonoras (a eletrificação da tocata e dos cantadores não permite ouvir a voz do mandador na roda). Neste vídeo, entende-se bem os mandos usados para realizar as figuras (será porque o som foi gravado em separado?): “Todos dançam”, “Mulher para frente”, “Bater palmas”, “Todos ao centro”, “Passa para trás, agarradinho”, “Passa para frente”, “Mulher por dentro, homem por fora”. Cada mando é introduzido por outras palavras, tal como “Certo”, “Certo agora”, “Vamos embora” ou “Ninguém se engana”, o que acrescenta alguma dinâmica à voz do mandador.
Considerando que o andamento é moderado e que o mandador anuncia as figuras a realizar sem grande codificação, podemos caracterizar o fado mandado como uma prática inclusiva, em que todos podem facilmente integrar uma roda de pares. Este fado mandado ilustra bem esta situação, porque mostra que os membros do Rancho Folclórico da Casa do Concelho de Pampilhosa da Serra convidaram membros do público para participar.
Ao nível coreográfico a formação espacial principal é uma roda de pares e a relação com o par e com a roda vai variando consoante as figuras mandadas. Assim, o par pode estar frente a frente, lado a lado, pode estar agarrado como pode estar ainda orientado para o centro da roda. As pegas são também variadas, os pares dão uma mão ou as duas mãos, e seguram-nas ao nível das ancas, das costas ou por cima dos ombros. Os pares andam na roda num ou noutro sentido, rodopiam sobre si e dão palmas e até pode haver lugar a troca de pares, como na figura do “enleio”. A formação pode passar de uma roda simples a uma roda dupla, as mulheres formando a roda de dentro e homens a de fora. Com a figura da “cesta”, as duas rodas juntam-se, graças aos braços que se entrecruzam, tal como uns vimes que formam uma cesta. E ainda observamos nalguns casos a formação de um cortejo, para realizar a figura dos “arquinhos”. O vídeo filmado em Coimbra permite visualizar a maioria das figuras encontradas.
As figuras do “enleio” e dos “arquinhos” são bastante comuns no repertório dos grupos folclóricos portugueses, sem obrigatoriamente incluir um mandador nem ter referência ao fado. Já a figura da “cesta” é menos presente. Encontramos no baile mandado no Algarve, no Douro Verde, mas também nas chamarritas nos Açores. O termo “cesta” é alias uma tradução do francês corbeille, figura coreográfica que integra a contredanse. Entendemos a contredanse não como uma dança em particular, mas como um género coreográfico que junta muitas danças e têm como ponto comum o facto de se privilegiar as relações interpessoais assim como as deslocações dos bailadores, em detrimento dos passos (Guilcher, 2004). A descrição de um tipo de contredanse, o cotillon, aproxima-se bastante da ideia de baile mandado em Portugal, uma vez que pode juntar imensas figuras numa só dança, devido à presença de um mandador que indica a ordem a seguir.
O FADO MANDADO NA LOUSÃ
Em relação ao concelho da Lousã, que integra o projeto “De volta aos Bailes Mandados em Portugal”, encontramos várias versões de fado mandado ou fado serrano, executados pelos grupos folclóricos do concelho, nomeadamente pelo Rancho Típico da Serra da Lousã, pelo Grupo Etnográfico da Região da Lousã (versão canto à desgarrada e concertina) mas também pelos membros da Escola de Concertinistas da Lousã.
O Rancho Folclórico e Etnográfico de Vilarinho tem uma dança chamada “serranas” cuja coreografia é a alternância entre a figura da cesta e a figura do enleio; sem mandador e nem fado.
No caso do repertório do Rancho Folclórico Flores de Serpins, “o verde gaio mandado” aproxima-se do fado mandado, tendo em comum as figuras, o passo base e o padrão rítmico do fado corrido. O andamento é muito mais acelerado (No vídeo o verde gaio mandado começa aos 18 minutos e 10 segundos.).
Com este projeto, esperamos aprender mais sobre o fado mandado neste concelho e esperamos que os lousanenses tenham vontade de reapropriar-se do fado mandado em contexto bailatório, tal como o pudemos vivenciar no Paul (Fundão) há alguns anos atrás, e tal como parece mostrar este vídeo filmado em Telhada (Figueira da Foz).
Imagens Grupo Etnográfico da Região de Coimbra – Fado Mandado
Texto de Sophie Coquelin
Bibliografia
Castelo-Branco, S. S.(ed.) (2011). Enciclopédia da música em Portugal no século XX. Lisboa, Circulo dos Leitores (4 vols.).
Castelo-Branco, S. S. & Freitas-Banco, J. (eds.) (2003). Vozes do Povo. A folclorização em Portugal. Oeiras, Celta. Doi:10.4000/books.etnograficapress.537
Guilcher, J. M.(2004). La contredanse : un tournant dans l’histoire française de la danse. Bruxelas, Centre National de la danse.
Nery, R. V. (2012). Para uma historia do Fado. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Sardinha, J.A. (2012). A origem do Fado. Vila Verde, Tradisom.
A Valsa Mandada no Litoral Alentejo, uma valsa amazurcada?
Quem nunca ouviu falar das Valsas Mandadas?
Desde 2007, a PédeXumbo multiplica as iniciativas para a valorização desta prática expressiva, junto com habitantes dos concelhos de Grândola e Santiago do Cacém. Com o projeto “De volta aos Bailes Mandados em Portugal”, inicia-se uma nova etapa: recuperar o território desta valsa! Com efeito, a valsa mandada ou valsa sagorra é hoje associada à Serra de Grândola, dividida entre os dois concelhos citados anteriormente. No entanto, existem vários indícios que mostram que esta valsa estava presente noutros concelhos do Alentejo Litoral. Além de explicita-los, vamos sintetizar e completar o trabalho feito por colaboradores da PédeXumbo ao longo destes anos.
SALVAGUARDAR A VALSA MANDADA
Em 2007, vários membros da Associação PédeXumbo (PX) deslocam-se até à garagem do Senhor Gamito, na Serra de Grândola, para conviver e bailar com o Grupo de Valsas Mandadas de São Francisco da Serra. Seguiram-se vários intercâmbios entre a Serra e Évora. Elza Neto efetua recolhas áudio de tocadores de Valsas Mandadas. A PX organiza um festival dedicado à valsa em Santa Margarida da Serra (Aqui há baile) e encomenda um filme ao realizador Tiago Pereira, Manda Adiante (acessível aqui).
@ imagens do filme Manda Adiante de Tiago Pereira
Em 2010, Lia Marchi efetua uma segunda fase de recolha, mais dedicada à arte de mandar. Os resultados foram publicados no livro Caderno de Danças do Alentejo vol.1 (disponível aqui), junto com material vídeo e áudio (disponível aqui).
Em 2012, Domingos Morais realiza uma terceira fase de recolha e organiza toda a documentação até agora encontrada. Disponibilizou online mais alguns vídeos (acessíveis aqui)
Em 2019, a PédeXumbo edita uma brochura da colecção Para Conhecer e Fazer com textos de Marta Guerreiro dedicada à valsa mandada e aos dois mandadores que colaboram há muito tempo na valorização desta prática expressiva (à venda aqui).
É de realçar que todas estas etapas foram realizadas graças à colaboração de pessoas que vivem nos concelhos de Grândola e Santiago do Cacém e, em particular, graças a Manuel Araújo. Além de acompanhar as recolhas, disponibilizou o seu arquivo pessoal (publicado no livro de 2010) e multiplicou a dinamização de workshops de valsas mandadas em todo o país. Acompanhado pela sua esposa e por Marlene Mateus, na concertina ou no acordeão, elaborou sessões de transmissão de forma a ensinar gradualmente as diferentes figuras. De facto ensinar uma dança sem coreografia à partida implica um método específico, mas nada que seja complicado para um professor de Educação Física, agora reformado.
A estratégia da PX para a valorização de práticas expressivas é sempre a mesma: recolha, transmissão e criação. As recolhas e as edições permitiram dar a conhecer esta prática desconhecida, em particular fora da Serra da Grândola. Porém, gravar ou registar uma dança não basta para a sua salvaguarda! É preciso ser incorporada, ou seja, uma dança mantém-se viva se é bailada. Vejam aqui o resultado de uma oficina de Valsa Mandada, dinamizada por Manuel Araújo, durante o Festival Andanças, em 2018. Junto à transmissão, a PX investiu na criação de novos arranjos. Foi neste sentido que programou uma residência artística em 2012, que se concretizou com a criação do grupo Aqui há Baile.
A PX deu ainda a conhecer a Valsa Mandada à coreografa Clara Andermatt. Além de usar como título do espetáculo um dos mandos – Fica no Singelo –, o climax deste espetáculo de dança contemporânea, com música ao vivo, é a revisitação da valsa mandada, com um despique que vai crescendo entre músicos e bailarinos (excerto a 3min do vídeo promocional do espetáculo).
@imagem de Inês D’Orey, espetáculo Fica no Singelo de Clara Andermatt
Com isto tudo, a valsa mandada está salvaguardada?
Ainda não. Ao longo destes anos todos, grupos de valsas mandadas, mandadores e acordeonistas, tais como Fernando Augusto, Marlene Mateus e Adélia Botelho, dinamizaram sessões para ensinar, praticar a valsa e dar-lhe visibilidade. Mas não basta. Felizmente, o ator em falta para tornar a salvaguarda efetiva entrou em ação nos últimos três anos, a Câmara Municipal de Grândola! Promove ações de formação localmente e candidatou a Valsa Mandada ao programa televisivo “7 Maravilhas da Cultura Popular” em 2020. Aguarda-se a realização de uma candidatura ao Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, uma vez que este processo implica um plano de salvaguarda para garantir que, daqui há 10 anos, a prática esteja viva.
A VALSA, MÚSICA E DANÇA
Agora recuamos um pouco no tempo para entender como é que esta Valsa Mandada surge no Alentejo Litoral. Segundo Alexandra Canaveira de Campos (in Tércio, 2010), as primeiras menções da valsa em tratados de dança em Portugal surgem em meados do século XIX. Faz parte das danças ditas românticas, junto com a polca, a mazurca e outras danças com pares agarrados, que encontram um grande sucesso em toda a Europa. Primeiro limitadas às elites, difundem-se nas zonas urbanas, atravessam as diferentes classes sociais e chegam às zonas rurais. No século XX, as danças a par que estavam na moda já não provinham do centro da Europa, mas das Américas (tango, fox-trot).
Não vamos entrar em pormenor na questão da origem da valsa – deixamos em bibliografia alguns livros dedicados ao tema -, mas podemos abordar a questão da distinção entre as três danças a par referidas – valsa, polca e mazurca. Para quem sabe dançá-las é fácil identificá-las e para quem as sabe tocar também. Mas como explicá-lo com palavras?
Para quem procura estudar a difusão destas danças no território português, torna-se bastante complicado porque os nomes dados às danças/músicas podem variar. Além disso, existe pouca descrição escrita para identificar com clareza do que se fala.
Geralmente associa-se a valsa ao ternário e a polca ao binário. No caso da mazurca, o que a distingue da valsa é a acentuação dos tempos. Mas tudo isso é ainda bastante imperfeito, e sobretudo existe muita variação. Fala-se por exemplo em valsas de 2, 3, 4, 5 e 8 tempos. Aqui, a confusão surge da própria referência numérica. Ou se fala em pulsação, ou seja no número de tempos por compasso, ou se fala em subdivisão do tempo, binária ou ternária. Neste caso, trata-se de saber se o tempo se divide em duas ou três unidades. A introdução da noção de compasso implica, por sua vez, a noção de acentuação, especialmente no caso do repertório musical para dança. Os tempos não têm todos a mesma importância, tal como na língua portuguesa, as palavras são compostas por várias silabas e só uma é acentuada. A acentuação varia consoante a música/dança, tal como as regras de acentuação mudam consoante o idioma.
Afinal, estamos a dizer que é a vertente musical que permite distinguir as danças entre elas e, de facto, existe uma convergência muito forte entre música e dança. Para descrever a valsa, o número três é quase sempre implícito. Pode ser 3 tempos como pode ser um compasso com subdivisão ternária do tempo. A nível coreográfico, a valsa caracteriza-se pelo rodopio dos pares, mas aqui também existem muitas variações. Basta ver a valsa chamada Boston, ou ainda as valsas executadas no contexto da dança desportiva, a Valsa Vienense e a Valsa Inglesa.
AS DANÇAS A PAR, A SUL DE PORTUGAL
Por outro lado, uma mesma música pode incluir a combinação de dois tipos de dança. Neste caso, mais do que falar em dança, poderíamos falar em passo: o passo da valsa, o passo da polca, etc…
Tal como a Valsa de Dois Passos executada pelo Rancho Folclórico Danças e Cantares de Vale do Paraíso (Azambuja), recolhida na Estremadura por José Alberto Sardinha, faz alternar mazurca e valsa. No Algarve, esta mesma alternância surge no Balso Rasteiro, executado pelo Grupo Folclórico da Luz de Tavira. A nível coreográfico, observa-se facilmente a alternância. Na mazurca, fazem-se passos laterais picados e na valsa roda-se com o par. A música pode ser escrita em 6/8, ou seja, dois tempos por compasso, sendo que a subdivisão do tempo é ternária. Na parte da valsa, o tempo forte está no primeiro tempo enquanto na parte da mazurca o tempo forte está no segundo tempo.
A Meia-passada, dançada pelo Grupo dos Amigos das Valsas Mandadas da Casa do Povo de Melides e pelo extinto Grupo de Valsas Mandadas de São Francisco da Serra, é também uma música onde se alternam dois tipos de passos. Reconhece-se o passo lateral picado do Balso Rasteiro e, na segunda parte, a valsa é substituída por uma polca. Aqui estamos numa conceção claramente binária do tempo.
Porque falar da Valsa de Dois Passos, do Balso Rasteiro e da Meia-passada aqui?
Porque estas aparecem no território onde a Valsa Mandada é referida. Quando Tomaz Ribas introduz, no seu livro, o Balso Rasteiro, ele dá como sinónimo o Balso Marcado, especificando que se trata de uma valsa amazurcada. No Sul de Portugal, vários grupos folclóricos bailam uma Valsa Marcada que corresponde à mesma caracterização. Porém, pode tornar-se, por vezes, complicado distinguir uma Valsa Marcada e uma Valsa Mandada, do ponto de vista musical.
Aqui temos um exemplo de Valsa Marcada, executada pelo Rancho Folclórico Fazendeiros de Montemor-o-Novo (a partir de 3min.).
A confusão aumenta quando Natália Varão, entrevistada em 2012 por Domingos Morais, em Santo André, assume que a Valsa Mandada podia ser chamada de Rasteira (no vídeo, a 9 min.).
A nível coreográfico, a aproximação entre a Valsa Mandada e a Valsa Marcada é menor. Com efeito, a Valsa Mandada não implica uma alternância entre dois passos distintos. Além disso, a Valsa Mandada inclui a presença de um mandador, figura que está ausente na Valsa Marcada. No entanto, tendo em conta que o mandador desaparece muitas vezes no contexto folclórico, pode manter-se a dúvida sobre o facto da Valsa Marcada ter sido originalmente mandada. Pois, por vezes, usa-se a noção de marcação para caracterizar a arte de mandar.
Tal como o explica Adélia Botelho, no filme Manda Adiante, a Valsa Mandada tem qualquer coisa que permite identificá-la facilmente! Talvez seja o recurso frequente à anacruza ou a importância da componente rítmica na melodia. Tal como a Valsa de Dois Passos e a Valsa Marcada, pode ser escrita em 6/8, ou seja, dois tempos por compasso, com subdivisão ternária. Porém, esta questão não está completamente fechada, uma vez que Adélia Botelho e Lia Marchi assumem que a Valsa Mandada se escreve em 3/4, ou seja, num compasso de três tempos com subdivisão binária. O que muda drasticamente entre estas duas conceções do tempo é o andamento! Se escutarmos a Valsa Mandada por Eusébio Pereira, o andamento é bastante lento (à volta de 70 pulsações por minuto) ao marcar o compasso em 6/8, ou muito rápido (210 pulsações por minuto) com compasso em 3/4.
@vídeo de A Dança Portuguesa a Gostar dela Própria, realização de Tiago Pereira
Por sua vez, a organização temporal da vertente coreográfica sublinha o 6/8, uma vez que cada compasso corresponde a um passo da Valsa Mandada. O passo-base pode ser definido como um balanço, onde alternam dois passos, primeiro o par aponta pela esquerda e regressa ao centro, e segundo, o par aponta pela direita e regressa ao centro. Para cada passo/compasso, muda-se duas vezes de perna de apoio. Quando apontam pela esquerda ou pela direita (primeiro tempo), o peso do homem fica na perna direita. Quando regressa ao centro (segundo tempo), o peso fica na perna esquerda.
Entrando em mais detalhes, para cada mudança de apoio existe uma troca rápida de pé e uma elevação de calcanhar, o tal passo valseado que surge em imensas danças tradicionais em Portugal. Pela alternância destes dois passos, o mandador tem que antecipar e anunciar uma figura para a esquerda quando se encontra do lado direito, e vice versa.
A VALSA MANDADA, UMA VALSA COLETIVA
A valsa, no seu entendimento mais comum, é uma dança com pares agarrados e autónomos. Ou seja, cada par escolhe o percurso a realizar na pista da dança, independentemente dos outros. Ainda assim existem algumas regras para garantir que os pares não chocam uns com os outros. Uma delas incide na circulação dos pares na pista em sentido anti-horário. Porém, esta definição não se adequa para a Valsa Mandada. Com efeito, trata-se de uma valsa coletiva, com pares organizados em roda e com um mandador que anuncia as figuras coreográficas a realizar de seguida. Na Valsa Mandada, os pares são interdependentes e formam uma roda de pares. Esta organização coletiva faz lembrar a contredanse e os seus avatares, quadrille e cotillon. Todas as danças que pertencem a este género coreográfico têm em comum o facto de se valorizarem deslocações no espaço (e não tanto passos complexos) e as relações interpessoais entre os bailadores. Fala-se em avatar na medida em que a contredanse não parou de variar ao longo destes dois séculos, seja a nível das figuras coreográficas, seja a nível da formação espacial dos bailadores.
Cronologicamente falando, a contredanse surge antes das danças a par. Os primeiros tratados de dança publicados em Portugal datam da segunda metade do Século XVIII e são dedicados à contredanse francesa. Este género espalha-se na população ao longo do século XIX. Em várias descrições encontradas, fala-se da introdução da valsa nas coreografias da contredanse. No youtube, é possível encontrar valsas coletivas, com sequências fixas de figuras e eventuais trocas de pares. Aqui o mandador não existe, os bailadores devem decorar a sucessão de figuras. Noutras situações, pode haver quem lembre a sucessão, verbalizando o nome das figuras.
Dentro dos avatares da contredanse, o cotillon interessa-nos muito porque se torna a dança “pot-pourri”, onde todas as figuras podem ser executadas. Aqui não se trata de decorar uma sequência de figuras, mas sim de reagir ao que o mandador anuncia. Tem também a particularidade de todos os bailadores executarem, ao mesmo tempo, as figuras (e não um par de cada vez, como na contredanse e na quadrille), o que permite aumentar o número de pares na pista.
Alexandra Canaveira de Campos (in Tércio, 2010) descreve o cotillon como a dança que finaliza o baile em Portugal, entre meados do século XIX e início do século XX.
Aproximamo-nos muito do que podem ser as origens da Valsa Mandada, mas sempre com um grau de incerteza, devido à falta de fontes escritas que possam comprovar esta hipótese.
MANDAR E BAILAR VALSAS MANDADAS
As diferentes recolhas efetuadas até hoje, na Serra de Grândola, permitem recuar há 100 anos atrás, até, pelo menos, à época dos pais de várias pessoas entrevistadas, em 2007. Venâncio Costa tinha 87 anos quando foi entrevistado no centro de dia de Santiago de Cacém. Natural de São Francisco da Serra, foi iniciado à Valsa Mandada durante a sua adolescência. Tocava-a na concertina e mandava-a. Este senhor transmitiu de forma muito clara a complexidade intencional das Valsas Mandadas. Ao contrário do que se diz hoje, ele reivindicava o facto de se bailar com o par, tanto à direita como à esquerda. Na execução do Rancho Folclórico Cinco Estrelas de Abril, permanece em parte a ideia de alterar a relação entre o par com o mando “Fica no singelo por fora” (1min05 do vídeo)
Referindo-se aos membros do Grupo de Valsas Mandadas de São Francisco da Serra, como os jovens, Venâncio Costa insistia sobre a quantidade elevada de figuras e sobre a sua dificuldade técnica, assumindo que a performance do extinto grupo era muito aquém do que se fazia anteriormente. Falava também em criação de figuras inéditas. Vídeo do grupo extinto.
Esta complexidade vai a par com o carácter exclusivo da Valsa Mandada. Vários mandadores insistem no facto dos bailadores terem de sair da pista se se enganavam, ou seja, existia uma competição forte entre quem estava a bailar. Além disso, durante uma valsa, o mando passava por todos os mandadores presentes na pista. Através das recolhas realizadas por Manuel Araújo (e publicadas no Caderno de Danças do Alentejo), nota-se que existia alguma variação na forma de anunciar as figuras, o que eventualmente aumentava a complexidade. Com efeito, os mandos raramente explicitam o que é para fazer, são codificados.
Hoje, existem muitos recursos online para aprender a bailar esta valsa. Além dos vídeos associados ao Caderno, o acordeonista Luís Vicente disponibiliza, no youtube, uma Valsa Mandada que inclui a gravação dos mandos de José Lenhas.
No Caderno de Danças do Alentejo vol.1, sistematizou-se a informação para descrever a organização espacial e algumas figuras mandadas nesta valsa (Pagina 56 a 64).
Pode-se acrescentar mais um nível de descrição, distinguindo o passo-base das figuras. Com efeito, o passo-base implica um balanço: ou o par aponta pela esquerda ou aponta pela direita. Uma vez que as posições do homem e da mulher na roda são diferentes, consoante este balanço, uma figura mandada de um lado ou do outro lado não será a mesma.
Vamos exemplificar com as figuras “Meia cadeia” e “Passa por diante”. Nas paginas 62-63 do Caderno, existe uma descrição detalhada dos movimentos. Se retirarmos o que tem a ver com o passo-base e a orientação na roda, apenas precisamos de descrever a figura “Meia-cadeia” da seguinte forma: a mulher dá uma volta ao homem, o par segura-se com uma mão em 6 tempos. Na figura “Passa por diante” o que muda é a ausência de contacto entre o homem e a mulher. Para facilitar o movimento da mulher, o homem deve deslocar-se um pouco, para frente e para trás. Assim, quando estas duas figuras são mandadas à direita, a mulher inicia logo a volta ao homem, no sentido horário e quando são mandadas à esquerda, o homem deve primeiro deslocar-se para frente para a mulher poder dar a volta em seguida, no sentido anti-horário.
Duas formas de descrever o mesmo. O que muda? Ao distinguir os movimentos do passo-base dos movimentos das figuras, torna-se possível destacar o balanço em si. Aqui estamos noutro nível da dança, que tem a ver mais com a assinatura corporal da Valsa Mandada do que com conhecimentos técnicos. Trata-se de manter o balanço esquerdo-direito, independentemente das figuras executadas. Isso é o grande desafio da Valsa Mandada, pois não se pode mandar se os pares não estiverem todos orientados para o mesmo lado. Trata-se de encontrar a organicidade desta valsa coletiva, deixar o corpo e o do seu par em alerta para o balanceado e escutar a voz do mandador.
No que toca à descrição da vertente coreográfica da Valsa Mandada, existem ainda duas curiosidades a introduzir.
A primeira prende-se com uma entrevista disponível aqui, onde o mandador Eusébio Pereira se refere à técnica do sapateado como tendo sido utilizada na Valsa Mandada. Nada de chocante quando estamos a falar de uma prática onde os bailadores e mandadores exibem as suas competências! O sapateado (ou fandango) acaba por ser uma forma de acrescentar, à coreografia coletiva, alguma virtuosidade individual e graça à sonorização dos passos. Alberto Gamito e Aldina Pereira referem-se à mesma questão, usando para o efeito a palavra “pecinhas” (Entrevista realizada em 2010).
Nesta mesma entrevista, Eusébio Pereira associa a dança “Puladinho” à Valsa Mandada.
O Rancho Folclórico Os Fazendeiros de Montemor-o-Novo executa uma versão em quadrilha desta dança fandangueada, mas não valseada. No discurso de introdução, a questão do despique entre os bailadores é também abordada.
A segunda curiosidade incide num elemento que continua a interrogar-nos passado tanto tempo, que é a forma como as deslocações na Valsa Mandada são bastante limitadas no espaço. Com efeito, os pares rodam um em cima do outro, mesmo quando não se tocam, como se houvesse falta de espaço. Sabendo que a Valsa Mandada tinha lugar nas casas particulares no campo – as referidas “funções” -, pode-se questionar se o lugar terá tido algum impacto na forma como a Valsa chegou até nós. Ou seja, no processo de apropriação da valsa, esta poderá ter visto as suas deslocações encolher por ser executada em espaços pequenos e, no processo de criação de novas figuras, poderá ter sido valorizado o jogo de braços e os rodopios cerrados.
O que se sabe é que na década 1950, a GNR começou a exigir licenças para organizar funções, o que prejudicou grandemente a continuação dos convívios familiares à volta da Valsa Mandada e outras danças de par. Júlio Nunes explica muito bem as consequências que o seu pai endossou por não ter pedido licença (filme Manda Adiante, a partir de 9 min. 40).
O TERRITÓRIO DA VALSA MANDADA
Partindo das características musicais da Valsa Mandada, encontramos várias versões áudio gravadas por Michel Giacometti, no concelho de Alcácer do Sal, nos anos de 1980 (O Ladrão do Sado acessível aqui), nomeadamente Toque Sagorra (vol.1), Sagorra e Sagorra II (vol.2).
Em 2015, Tiago Pereira filmou uma Valsa Mandada neste mesmo concelho, com uma senhora a mandar.
No que toca ao repertório de grupos folclóricos, encontramos várias versões de Valsas Marcadas ou Valsas de Dois Passos, em concelhos alentejanos ou mais longe ainda, mas nenhum grupo possui mandadores.
Valsa Marcada, pelo Rancho folclórico Danças e Cantares da região do Barreiro (Barreiro)
Valsa Alentejana, pelo Grupo Etnográfico Planície Alentejana (Aljustrel)
No repertório do Rancho Folclórico e Recreativo de Lagoinha (Palmela) é mencionada uma dança chamada “Sagorra”, mas não foi possível encontrar vídeo ou áudio para poder comparar.
Porquê então assumir que a Valsa Mandada vai além da Serra de Grândola?
Primeiro porque Giacometti gravou-a fora da Serra. Segundo, porque os tocadores circulavam no território, além do seu concelho de origem. Fernando Augusto é um bom exemplo. Tocador afamado de concertina e acordeão e natural do concelho de Grândola, podia ir animar um baile até ao concelho de Odemira. Terceiro, porque se fala muito em mobilidade de pessoas no Alentejo Litoral, por causa da monda do arroz que atraía muita gente para a zona do Sado. Existem outras razões para as pessoas se moverem, tais como a ida à Feira de Castro Verde ou ainda aos banhos de São Romão, que traziam muitos camponeses para a costa de Santo André (Santiago do Cacém). Quarto, porque a presença da concertina, harmónica e acordeão na região ilustra uma boa permeabilidade às novidades trazidas de fora. Tal como o sublinha José Alberto Sardinha, no seu livro dedicado às tradições na Estremadura, estes aerofones de palheta metálica substituíram progressivamente os instrumentos até então usados (cordofones e aerofones do ciclo pastoril), a partir da segunda metade do século XIX. Além disso, adaptam-se perfeitamente ao repertório musical das danças a par.
Enfim, a Valsa não terá chegado até os serranos sem passar primeiro por outras populações, tais como os habitantes das vilas e dos portos nos arredores. O que nos parece mais provável é que a Valsa Mandada tenha integrado o fluxo de danças que se sucederam durante os séculos XIX e XX. Enquanto muitas eram substituídas por novas danças, a Valsa Mandada permaneceu mais tempo naquela zona, tendo encontrado perto da população serrana uma maior afeição. Tal como o veremos para a Contradança inserida no Baile da Pinha, no Alentejo Central, uma prática expressiva pode revestir-se de uma dimensão ritual em determinadas comunidades e noutras comunidades ser apreendida apenas como um fenómeno de moda, caracterizado pelo ser temporário e rapidamente substituível.
É o que nos sugere o testemunho de Manuel Araújo sobre os bailes organizados na Feira de Melides, durante a sua juventude (anos 1960). Fala em dois bailes a acontecer em simultâneo, organizados em dois lugares diferentes, para dois tipos de população. No Casão do Tio Bernardino, os serranos/camponeses bailavam sobretudo Valsas Mandadas enquanto na Casa do Povo, os habitantes da aldeia bailavam tangos, fados e outras danças a par, que estavam na moda naquela altura. Aqui parece sobrepor-se uma questão de estratificação social entre as diferentes populações que viviam na freguesia de Melides, fenómeno social que foi bem estudado por José Cutileiro no Alentejo. Por outro lado, já estava em marcha o êxodo rural e, com isso, o abandono das zonas menos produtivas, tal como a Serra. Para quem vivia ali, como é que estas mudanças terão sido recebidas? Como manter a coesão numa comunidade que fica esvaziada da sua gente nova, atraída pelas cidades? Neste contexto, pode-se perguntar se a complexidade da valsa mandada não terá sido uma forma de resistência simbólica face a um futuro que já se adivinhava.
A VALSA MANDADA EM SINES
Não foi encontrada, até agora, nenhuma menção à Valsa Mandada neste concelho em específico, excepto num vídeo de um baile realizado em Sines, durante uma festa popular em 2011, encontrado no youtube. No palco, um acordeão e uma caixa de ritmo tocam uma Valsa Mandada. No chão, dezenas de pares valseiam de forma autónoma. Mas, independentemente da presença ou não de um mandador na pista, como é que a sua voz podia ser ouvida, com tantas colunas de som a tocar no palco?
Existem vários argumentos que permitem justificar esta situação, o que nos leva a manter a esperança de um dia encontrar alguma menção à Valsa Mandada neste concelho. Primeiro, é preciso referir que Sines fez parte do concelho de Santiago do Cacém, entre 1855 e 1914, época que corresponde à chegada e prática da valsa em Portugal. Neste sentido, distinguir este concelho do concelho vizinho pode ser relativo. Segundo, ao contrário do Algarve, a costa sul alentejana não foi alvo de turistificação de massa a partir dos anos 1960, o que poderá explicar a ausência de grupos folclóricos nos concelhos de Sines e Odemira. De facto, o folclore e o turismo são dois fenómenos que andam juntos, uma vez que um precisa de outro para se assistir às representações da cultura local.
Por fim, o concelho de Sines foi alvo de mudanças grandes no seu território, o que terá trazido outras preocupações maiores do que manter as tradições locais. Com efeito, depois de um êxodo rural forte em todo o Alentejo, a partir da década de 1950, Sines passou a receber população de fora a partir da década 1970, ao ter-se transformado num dos principais complexos portuários e industriais de Portugal.
À falta de referências no âmbito folclórico, encontram-se na literatura algumas pistas sobre a evolução das práticas coreográficas neste concelho. Na sua monografia sobre Sines, editada em 1850, o médico algarvio Francisco Lopes cita apenas como dança os bailes de roda acompanhados pelo canto. Quase cinquenta anos depois, a siniense Cláudia Campos edita Elle, livro com dimensão autobiográfica, apesar dos nomes e lugares serem trocados. Neste livro, cita a valsa, bailada e tocada ao piano pela alta sociedade. Em 1890, José Maria Soeiro de Brito declara como urgente o facto de recolher as tradições coreográficas alentejanas, uma vez que estas foram substituídas pela “invasão das aristocráticas, pedantes, anti-higiénicas e soturnas danças francesas”.
Afinal, parece-nos que o repertório de danças a par coincide com a introdução de novos instrumentos, os tais aerofones de palheta metálica, no Alentejo Litoral. Estamos aqui a falar de um período entre 1850 e 1900.
Uma última menção a Sines vem-nos através da velha concertina do afamado tocador de Valsa Mandada, Manuel Louricho. O seu sobrinho refere-se a esta como tendo sido fabricada por um sujeito em Sines (Na entrevista, a 21 min. 30). Ficou também registado nas letras dedicadas ao tocador (Pagina 70 e 71 do Caderno).
Bibliografia
Sobre o contexto português
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Sobre a valsa e danças de par
Appril, C. (2006). Sociologie des danses de couple. Une pratique entre résurgence et folklorisation. Paris : l’Harmattan.
Bakka, E. ; Buckland, T.J. ; Saarikoski, H. & Wharton, A. B. (eds.) (2020). Waltzing through Europe. Attitudes towards Couples Dances in the long Nineteenth-Century. OpenBookPublishers.
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Yaraman, S. H. (2002). Revolving Embrace: The Waltz as Sex, Steps, and Sound. Hillsdale, NY: Pendragon Press.
Vira, Chula e Cana Verde/Malhão
Os bailes marcados no Minho
É impensável falar em dança tradicional e no Minho, sem introduzir as romarias e o folclore, mas o lugar da dança não se limita aos palcos que acolhem os numerosos grupos folclóricos minhotos! As praças públicas podem ser inundadas por tocadores de concertina e por bailadores executando Viras, Chulas e Canas verdes. Estes são os três tipos de dança em que se pode ouvir a voz de um mandador em Ponte de Barca, concelho escolhido para este projeto.
Em Portugal, falar em dança tradicional e em dança folclórica parece ser sinónimo. Porém, podemos e devemos distinguir estes dois adjetivos. A dança folclórica é a dança executada em contexto folclórico, geralmente através da apresentação pública de grupos folclóricos. Enquanto a dança tradicional se refere ao contexto na qual a dança era executada no passado: em bailes, cortejos religiosos ou ainda durante alguns rituais. Vários investigadores europeus apontam a Primeira Guerra Mundial como momento-chave para marcar o fim de um modo de vida tradicional, nas zonas rurais. Em Portugal, talvez seja possível recuar menos no tempo, para algumas zonas do país. Em todos os casos, fala-se de um tempo que acabou, mas que é alvo de numerosas interpretações, mais ou menos efabuladas, até aos dias de hoje.
Esta rutura no contexto de execução não implica que as práticas tradicionais tenham acabado de vez. Nalgumas situações mantiveram-se com mais ou menos alterações, noutras foram substituídas, e noutros casos, foram revitalizadas, ou seja foram atualizadas para os tempos modernos. Pode-se considerar a folclorização como uma forma de revitalização da dança tradicional, tal como o revivalismo, no qual a PédeXumbo se insere. Mais recentemente, um outro processo de revitalização ganhou força em Portugal, a patrimonialização do imaterial, onde se incluem a música, a dança e as próprias festas populares. Assim, podemos considerar que hoje coabitam várias formas de representar a dança tradicional em Portugal.
A DANÇA E O FOLCLORE
O folclore é muitas vezes associado ao Estado Novo, no entanto deve ser entendido a partir de preocupações que lhe são anteriores. Com o romantismo, as elites passam a interessar-se pelas práticas culturais do povo. Foram assim editados cancioneiros a partir do fim do século XIX (O Cancioneiro de César das Neves é um dos mais famosos). Em 1896, um dos primeiros realizadores de cinema em Portugal filmou um Vira (disponível aqui), esta altura coincide com a construção dos Estados-Nações. Em Portugal, procurou-se no campo os traços mais marcantes da portugalidade, partindo do princípio de que as zonas rurais eram menos permeáveis à modernidade. Seguindo o mesmo pensamento, surgiram iniciativas para mostrar na cidade as práticas do campo. Parafraseando Barbara Alge (2007), um grupo de Pauliteiros de Constantim foi convidado para ir a Lisboa representar as suas danças mirandesas, em 1898, no âmbito das comemorações da chegada de Vasco de Gama à Índia. Na década de 1910, no Minho, a figura de Abel Viana é associada à organização de grupos de pessoas que representam os seus costumes (in Sardo, 2009). Este estudioso colaborou com um dos primeiros grupos folclóricos a ser formalizado (1924), o Rancho Regional das Lavradeiras de Carreço (Viana do Castelo).
O que muda aqui?
Enquanto a dança tradicional era executada por camponeses nas suas comunidades (de si para si), a prática folclórica introduz um novo ator, o público exterior à comunidade, tal como os habitantes das cidades, as elites ou mesmo os estrangeiros. Tal como os cancioneiros implicavam adaptações aos gostos musicais das elites, a representação dos costumes locais por grupos de camponeses implicava algumas alterações ao nível coreográfico ou musical, mas sobretudo ao nível visual. A adoção do traje permite esconder a realidade dos camponeses (condições de higiene e acesso a bens – roupas e sapatos) e adequar-se aos gostos estéticos do público.
De uma certa forma, a política do Estado Novo intensificou o que já se desenhava, sistematizando e enquadrando todo o processo de folclorização. Com a criação das Casas do Povo a partir de 1933, o Estado passou a controlar melhor a vida dos camponeses e foi nestas instituições que se formaram muitos grupos folclóricos. O Estado também organizou eventos de âmbito nacional ou supranacional que acabaram por promover a criação de grupos, tal como a Exposição Colonial (1934), as Comemorações dos Centenários (1940) ou ainda o Concurso da Aldeia mais Portuguesa (1938). Com o apoio de estudiosos, estabeleceu-se um atlas das práticas expressivas, definindo as que melhor representavam as províncias metropolitanas desenhadas em 1936, posteriormente substituídas por distritos (1959). Segundo Tomas Ribas (1982), Pedro Homem de Mello identifica três géneros de dança para o Minho: o Vira, a Chula e o Malhão. Pode ainda citar-se Gonçalo Sampaio como estudioso no Minho.
Analisar a prática folclórica hoje
Damos um passo gigante e chegamos ao século XXI, quando a antropologia procura desconstruir os discursos construídos anteriormente sobre a questão da identidade (nacional e regional) e da ruralidade em Portugal. Neste âmbito, recomenda-se a leitura do livro do antropólogo João Leal, Antropologia em Portugal: Mestres, Percursos, Tradições. Do lado da etnomusicologia (que acaba por abranger a questão da dança também), recomenda-se o livro coordenado por Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco Vozes do Povo. A folclorização em Portugal (acessível online). Na bibliografia final, disponibilizam-se outras referências que permitem contextualizar e pôr em causa algumas das ideias que fundaram a noção de portugalidade e os seus regionalismos (Sardo, 2009; Soeiro de Cavalho, 1999; Vasconcelos, 1997 e 2001). Além disso, incluímos estudos antropológicos que se focam na região do Minho (Callier-Boisvert, 1999; Pina-Cabral, 1989).
Mas o que nos interessa aqui é mais a prática do que os discursos sobre a prática. Concretamente, a pergunta é: O que se altera quando uma prática expressiva é colocada em palco? João Vasconcelos (2001) identifica dois paradigmas entre os quais os grupos folclóricos navegam, o da estilização e o da reconstituição. Por um lado é preciso adequar a performance à expectativa do público e por outro é preciso manter alguma fidelidade em relação ao que era bailado e tocado no passado, a tal autenticidade, muitas vezes invocada pelos grupos folclóricos. No caso da estilização, podemos citar vários pontos que alteram a vertente coreográfica. Para uma performance ser apetecível, é preciso apresentar conteúdo variado, senão o tédio instala-se. Assim, a coreografia torna-se mais complexa, o que não é complicado quando existem ensaios para os dançarinos poderem decorá-la. A complexidade vai a par com a virtuosidade. Quando se acelera o andamento da música, aceleram-se os movimentos do corpo. A virtuosidade pode levar à invenção de movimentos, tal como a escovinha no corridinho algarvio, que acaba por ser uma optimização do movimento circular do par. Outro aspeto é a harmonização dos movimentos dos dançarinos, privilegiando de uma certa forma a ideia de corpo de baile, retirando qualquer marco de individualidade.
Usar um termo da dança clássica não parece tão desajustado. Com efeito, ao considerar o folclore como a construção pelas elites de uma representação do camponês, é mais que provável que estas elites também dominassem esta outra linguagem artística. A criação da Companhia de Bailado Verde Gaio, em 1940, pode ser vista como uma tentativa de aproximação entre estes dois géneros de dança, em Portugal. Além disso, as motivações que levaram à criação desta companhia podem ser contextualizadas na história da dança clássica, uma vez que as “danças de carácter” integram o ballet desde o século XVIII.
Além da dança clássica, podemos citar o teatro de revista como outra fonte de inspiração para a criação de repertório folclórico em Portugal. Aplica-se no caso das encenações feitas a partir de situações que pouco têm a ver com música e dança. A título de exemplo, o Grupo Folclórico do Cano (Sousel) encenou uma Dança do Varapau que ilustra as lutas que podiam surgir entre pastores, o que torna o cajado um adereço coreográfico.
Induzida pelo palco, a relação entre os dançarinos e o público implica outras alterações ao nível da formação espacial. As rodas abrem-se para o público ver melhor. A formação espacial em linha é bastante usada pelos grupos folclóricos no Minho. Nesta situação, a relação com o par ou com a quadrilha pode ser quebrada, em benefício do público que assim pode ver os dançarinos de frente.
Exemplo de um vira em linha onde a relação com o par pode ser quebrado (Grupo Folclórico de Bravães, a partir de 1.30).
A escolha do traje também tem repercussão na vertente coreográfica. No caso do Minho, podemos falar das saias que convidam a rodopiar de forma enérgica, permitindo fazer aparecer a roupa interior. Além disso, como os chinelos usados não se prendem ao calcanhar, a mulher está impedida de saltar, para não arriscar perdê-los.
Em relação à música, para além da aceleração do andamento, podemos ainda referir o tamanho excessivo da tocata e, em particular, o facto de todos atuarem ao mesmo tempo. Para as vozes, tem grande repercussão, uma vez que passam a competir com instrumentos com volume elevadíssimo, tal como o acordeão, o que implica que as mulheres forcem os agudos, distorcendo de uma certa forma o seu timbre natural.
Agora, centrando-nos sobre o baile mandado, entende-se facilmente porque o mandador terá tendência a desaparecer das apresentações dos grupos folclóricos. A figura do mandador terá surgido na Contredanse, como apoio à memória dos dançarinos, relembrando o que fazer a seguir, no momento da performance. Com ensaios regulares, os membros dos grupos folclóricos podem decorar a coreografia sozinhos. Nas situações em que o ato de mandar implica anunciar uma sucessão de figuras coreográficas, sem ordem pré-determinada, o caráter espontâneo e improvisado aumenta a probabilidade de engano no palco, pelo que é privilegiada a constituição de uma coreografia fixa. Mais uma vez, o mandador desaparece ou torna-se apenas um elemento da encenação, como é o caso nos grupos folclóricos algarvios, onde se mantém a performance vocal do mandador, mas as quadras são decoradas e não improvisadas no momento. Assim, a constituição de uma sucessão fixa de figuras aproxima-se da ideia introduzida anteriormente, a complexificação da vertente coreográfica.
Confrontando estas alterações com a análise das performances dos grupos folclóricos no Minho, entende-se o porquê da variação entre os grupos, assim como no seio do repertório de um só grupo.
A tarefa seguinte passa a efetuar um trabalho a contra-corrente: descomplexificar. Mais do que manter-nos na oposição entre estilização e reconstituição, trata-se de descortiçar as coreografias e ver que recursos coreográficos estão presentes. Assim, nota-se em vários grupos o uso dos “arquinhos”, figura coreográfica executada em cortejo. Os pares formam uma coluna, caminham uns atrás dos outros, o homem ficando ao lado da mulher. A certa altura, um par altera o sentido no qual caminha e passa por baixo dos braços dos outros pares, seguido depois pelos pares que o seguem. Esta figura implica alguma variação, como por exemplo o facto de alternar entre passar por baixo ou deixar passar um par por baixo dos seus braços.
Figura dos arquinhos na Tirana (vira) do Grupo Folclórico de Dém (Caminha) (no vídeo a partir de 7min.45).
A figura dos arquinhos provém provavelmente do conjunto de figuras popularizadas pela contredanse. Em Portugal, existem em muitas regiões, inclusive nos arquipélagos. A figura do 8 é outro exemplo disso (a deslocação simula as curvas do número oito no chão, ao dar a volta a dois dançarinos do sexo oposto). Outra influência deste género coreográfico é a existência de quadrilhas. Este termo é polissémico porque implica dois tipos de formação distintos: dois pares frente a frente ou quatro pares formando um quadrado. Nos dois casos, existe dinâmica entre os pares, havendo espaço para a troca de lugar.
Exemplo de quadrilha com 4 pares: Vira Cruzado do Grupo Folclórico de Lindoso. No vídeo a partir de 12min.20
Exemplo de quadrilha com 2 pares: Chula de Costas do Grupo Folclórico Entre Ambos os Rios.
Podemos questionar a velocidade imprimida aos viras e canas verdes. A análise da performance do grupo folclórico Gonçalo Sampaio faz-nos pensar que o andamento poderia ser mais lento no passado. (No vídeo a partir de 4min50.)
Quem já tentou bailar no Minho sem ser minhoto, poderá ter percebido porque se torna tão complicado aguentar uma dança inteira sem ficar com a língua de fora! Porém, pode-se assumir que é uma questão de competência. Ao ver certos pares bailar, parece simples. Supõe-se que haja uma optimização dos recursos físicos requisitados conforme o grau de incorporação de certos movimentos. Ou seja, ao ter prática em bailar viras e canas-verdes, um par cansa-se menos!
A DANÇA E A MÚSICA TRADICIONAL SEM O FOLCLORE
Mesmo no Minho, existem outras representações da música e dança tradicional sem ser a do folclore. Aqui apresentamos três.
O Povo que Canta de Michel Giacometti e Fernando Tropa
À imagem do folclore pode-se opor a imagem veiculada pelos filmes de Michel Giacometti e Fernando Tropa da série televisiva “O Povo que Canta”, realizada no início dos anos 1970. Trata-se de facto do mesmo objeto, mas com uma estética e um discurso associados bem distintos.
Ao contrário do discurso que enquadra o folclore, a dupla Giacometti/Tropa não procurou esconder as condições de vida no campo. O genérico inicial mostra, por exemplo, quão difícil era aceder a certas partes do país. Além disso, Giacometti incluiu excertos de entrevistas feitas a camponeses, que na maioria das vezes declaravam ser analfabetos ou possuir apenas a quarta classe. As pessoas eram filmadas com as suas roupas, nas suas aldeias. O etnólogo não escondia o facto de recorrer à reconstituição quando certas práticas expressivas tinham caído em desuso, e mais, incluía nos planos o próprio contexto no qual certas cenas tinham sido gravadas. A nosso ver, estes elementos permitiam dar legitimidade à investigação que tinha sido realizada antes das filmagens, colocando a transparência no primeiro plano.
Giacometti procurava mostrar como se vivia no campo em Portugal, no século XX, e não tanto um passado/presente considerado imemorial e imóvel. Apesar de procurar por práticas expressivas antigas, filmava a realidade sem esconder as novidades. A título de exemplo, a filmagem de uma romaria na Beira Baixa apresenta um grupo de pessoas que toca adufe e pandeireta, seguido por uma banda filarmónica. Esta co-presença pode levar a pensar que a banda tinha ali aparecido recentemente e coabitava com a prática sonora anterior. E pode-se imaginar porque hoje só a banda está presente no cortejo (este vídeo parece confirmá-lo).
Contudo, falar em realidade crua não implica que a miséria esteja à vista. As imagens de Fernando Tropa dignificam quem lá aparece. Alternando entre planos fechados sobre os intervenientes e planos abertos, o público (quem tinha acesso à eletricidade e quem possuía uma TV no início dos anos 1970) era convidado a aproximar-se e a testemunhar as condições nas quais se vivia no campo. A voz off feminina complementava os planos das câmaras, impulsionando uma certa identificação entre “atores” e espetadores, ao usar com muita frequência a expressão “Nós, portugueses”.
Três episódios de “O Povo que Canta” são dedicados ao Minho, gravados nos concelhos de Ponte de Lima, Arcos de Valdevez e Ponte da Barca. As polifonias femininas são destacadas, assim como a prática vocal em contexto laboral (agricultura) e religioso. Músicas para bailar estão presentes em dois dos episódios. Um grupo de Zés Pereiras (gaita de foles e tambor) vindo de Covas de Aboim (Vila Verde), toca a alvorada e músicas para dançar, com ritmo característico da Chula, Cana Verde e Malhão (no vídeo a partir de 8 min.). Na serra de Arcos de Valdevez, um acordeonista é acompanhado por castanholas (no vídeo a partir de 27 min.). Vê-se pares a bailar um vira e ouve-se a voz de um mandador. A coreografia mostra homens e mulheres a rodopiar e a trocar de pares, a roda circulando nos dois sentidos, anti-horário e horário.
Tiago Pereira e a Música Portuguesa A Gostar dela Própria
Passado quarenta anos desde “O Povo que Canta”, o realizador Tiago Pereira com o seu projeto A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria viaja por todo o país e dá a conhecer práticas musicais atuais, geralmente amadoras e pouco visíveis nos media. Os recursos tecnológicos são simples: uma câmara, um gravador, um plano fixo e um olhar assertivo para escolher os cenários.
Selecionamos alguns vídeos de Viras gravados no Minho, cada um com um conjunto instrumental, diferente do habitual conjunto de concertinas.
Vira “Rosinha” tocado pela Charanga do Ribeirinho (clarinete, saxofone soprano, gaita de foles, acordeão, caixa, bombo e pratos). Vídeo acessível aqui.
Outro Vira tocado por Zézé Fernandes e Sérgio Limiano (canto, cavaquinho, concertina e rio Lima). Vídeo acessível aqui.
Mais um Vira, tocado por Manuel Saraiva e Fernando Cerqueira Barros (flauta travessa e cavaquinho). Vídeo acessível aqui.
Vira de Santa Marta tocado por João Correia (viola braguesa). Vídeo acessível aqui.
Uma patrimonialização da dança e das festas minhotas
Depois de um conjunto de leis que permitem salvaguardar edifícios e monumentos, objetos e paisagens, é a vez das práticas expressivas entrarem na arena do património. O século XXI inicia-se com a ratificação da Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (2003 a nível mundial e 2008 em Portugal). Incluindo práticas expressivas, festas, rituais e saberes-fazer, o Património Cultural Imaterial (PCI) é a nova forma de identificar e salvaguardar as tradições que se mantiveram até aos dias de hoje. Como para a folclorização durante o Estado Novo, trata-se de um processo administrativo da responsabilidade do Estado. Na Convenção da UNESCO é estipulado que cada país crie condições para efetuar um inventário nacional. Em Portugal, o processo é visível a partir do website MatrizPCI. Ao contrário da folclorização, não se pretende aplicar uma perspetiva de cima para baixo – as elites sobre os camponeses -, mas o contrário, de baixo para cima. São as comunidades que devem ser os atores principais e promotores da patrimonialização. Para o efeito, são geralmente apoiadas pelas Câmaras Municipais que se responsabilizam pelo plano de salvaguarda que acompanha a inventariação das práticas existentes no seu território.
Independentemente de realizarem candidaturas ao inventário nacional, nota-se que as Câmaras Municipais investem muito neste domínio, nos últimos anos. Trata-se de valorizar o concelho a partir das sua tradições (produção de alimentos e bebidas, artesanato), das suas paisagens e das suas festas, geralmente numa ótica turística. Os concursos das 7 Maravilhas na RTP é um dos melhores exemplos deste investimento. No ano passado, duas romarias minhotas entraram nas 7 maravilhas da cultura popular, a de São João d’Arga (Caminha) e a de São Bartolomeu (Ponte da Barca).
No que toca ao concelho que nos interessa, Ponte da Barca, o programa das festas da romaria de São Bartolomeu dá grande destaque às tradições locais. Ao longo de seis dias, multiplicam-se mostras e concursos dos saberes locais (gastronomia, feira do linho, corrida de cavalos). As noites são sobretudo dedicadas às práticas expressivas locais: os 12 ranchos folclóricos do concelho atuam nos palcos, uma noite é dedicada ao canto ao desafio, outra ao desfile de rusgas (vídeo aqui). O largo da Urca acolhe quem quiser bailar ou tocar durante as seis noites da romaria (vídeo aqui). Existe ainda um cortejo etnográfico à tarde. Os grupos de Zés-Pereiras e os Grupos de Bombos são também inseridos no programa das festas. Para saber mais, basta visitar o website da romaria.
Além desta romaria, outras celebrações acolhem danças mandadas. A partir de uma pesquisa online, encontramos vídeos realizados em Lindoso durante o Carnaval. Neste caso, a voz do mandador é substituída por um apito. Noutra freguesia do concelho, Bravães, é durante a Desfolhada que se baila. Enfim, vêem-se vários vídeos filmados numa tenda com estrados, em Ponte da Barca.
Existem notícias de que a Câmara Municipal de Ponte da Barca programa na Praça da República, atuações de grupos folclóricos locais, durante os meses de abril, maio e junho. Numa notícia da Lusa, em 2019, fala-se em encontros informais e semanais, ao domingo à tarde (será que corresponde ao tal vídeo com pessoas a dançar por baixo de uma tenda?). Para dar melhores condições ao longo do ano, o presidente da Câmara Municipal prometeu um “virodromo” e investimento na oferta formativa em dança e música.
O que muda drasticamente com a patrimonialização é o facto do contexto no qual a prática expressiva é executada e a própria prática serem indissociáveis. Como explica Laurier Turgeon (2010), há uma mudança de regime do património cultural quando passamos do material para o imaterial. Da contemplação estética do objeto patrimonial, tal como o monumento ou o espetáculo folclórico, chegamos a um regime que valoriza a performance da pessoa e a experiência sensível da cultura. Neste caso, trata-se do baile, aberto a todos os que queiram entrar na roda.
Algumas datas a não esquecer
Romaria de São Bartolomeu, Ponte da Barca, 19 a 24 de agosto
Romaria de São João d’Arga, Caminha, 28 e 29 de agosto
Romaria de Nossa Senhora da Peneda, Arcos de Valdevez, 1 a 8 de setembro
Feiras Novas, Ponte de Lima, segundo fim de semana de setembro
Para se ter noção da vivacidade da dança no Minho, aconselha-se o canal youtube de “APimenta Pimenta”. Fora do Minho, também se bailam Chulas e Viras Mandados. A diáspora dinamiza encontros informais à volta da música e dança, como por exemplo nos jardins em Lisboa.
A DANÇA E UM DOS SEUS CONTEXTOS PRIVILEGIADOS: A ROMARIA
Entre o início da folclorização e a patrimonialização do imaterial, passou quase um século. Na década de 1970, Pierre Sanchis como Michel Giacometti presenciavam festas com bailes mandados. Mas tal como Pierre Sanchis notou, as práticas expressivas executadas de forma mais ou menos espontânea estavam a desaparecer nas romarias portuguesas.
O livro de Pierre Sanchis, “Arraial: Festa de um Povo” é o resultado de uma investigação realizada em 1973 em todo o país. Segundo Sanchis, uma romaria é organizada à volta da memória de um santo, representado por uma relíquia ou por uma imagem. Implica uma peregrinação até ao lugar, motivado pelo cumprimento de uma promessa. Porém, caracterizar uma romaria não se limita à questão da religiosidade. Tal como o autor afirma, a romaria era um dos contextos privilegiados para a prática do canto e da dança, em Portugal. Os testemunhos que ouviu falavam sempre disso, mas referindo-se ao passado. Com efeito, alguns elementos vieram alterar o lugar das práticas expressivas na romaria, nomeadamente, a aparição dos altifalantes no recinto da festa, na altura da Segunda Guerra Mundial. É impossível tocar um instrumento ou cantar ao lado de um altifalante, onde ninguém se ouve. Por outro lado, a própria Igreja aumentou a pressão para separar as práticas cerimoniais das práticas festivas. Outras mudanças na sociedade tiveram repercussão na romaria, tal como a emigração, o êxodo rural e a ida massiva dos homens para as guerras coloniais que viraram do avesso as próprias comunidades. Na década de 1970, é o desenvolvimento dos transportes (coletivos e depois individuais – autocarros e carros) que acaba com o facto dos romeiros pernoitarem no recinto e com as grandes caminhadas entre a sua aldeia e a romaria. Ora, eram dois momentos onde se convivia e naturalmente onde se cantava e dançava. As raras situações de danças espontâneas observadas por Sanchis surgiram precisamente nas zonas de acampamento, já longe do barulho dos altifalantes.
O que acho mais interessante neste livro é a forma como Sanchis identifica alguma complementaridade entre a dimensão espiritual e a dimensão festiva da romaria. Sanchis recusa-se a usar a oposição entre sagrado e profano. Para ele, as duas dimensões citadas são necessárias para o sucesso da romaria. Citando-o “Ora, entre as festas, a romaria é caraterística de uma sociedade – essencialmente rural – estruturalmente marcada pela presença e dominação do sagrado. É portanto, para a fusão (a confusão) do sagrado com aquilo que não o é que se dirige a principal supressão de fronteiras que ela realiza.” (p.140). Acrescenta ainda a ideia de que a romaria assemelha-se a uma utopia, na medida em que se estabelece num lugar diferente do espaço social habitual. Um dos exemplos mais ilustrativo é a romaria realizada na Serra d’Arga, epicentro do Alto Minho, onde se juntam os concelhos de Viana do Castelo, Caminha, Ponte de Lima e Vila Nova de Cerveira.
Ao nosso ver, Sanchis define a religiosidade popular como a expressão de uma ligação direta entre a população e o divino, sem a mediação da Igreja. O quadro extraordinário da romaria possibilita esta ligação direta, o corpo sendo um dos elementos centrais. Sanchis ultrapassa a habitual associação entre dança e divertimento, para assumir que esta se relaciona também com o sagrado, em particular como o contraponto da promessa. Não se trata de um corpo sofredor, mas sim de um corpo que age para alterar o destino. Neste âmbito, pode-se sublinhar a proximidade entre o corpo que caminha e o corpo que dança ou festeja e, nas duas situações, trata-se de um corpo ativo, distante do espetador, estatuto no qual a sociedade moderna encarcerou o corpo.
(Coincidência, para a edição 2021 do Festival Andanças, com o mote “A Caminhar para o Andanças”. A PédeXumbo dá a conhecer o novo espaço do Festival Andanças, caminhando!)
Regressando ao presente, interessa-nos perceber quais são estes corpos bailadores no terreiro, seja durante os encontros regulares ao longo do ano, seja nos momentos extraordinários que pontuam o verão minhoto (romarias, festas de concelho e feiras).
AS DANÇAS MANDADAS HOJE: VIRA, CHULA E CANA VERDE/MALHÃO
A partir dos vídeos disponibilizados online, encontramos bailadores de todas as idades, jovens e menos jovens. Alguns dominam muito bem a técnica dos passos, a colocação dos braços no ar e os rodopios energéticos. Outros não tanto. A partir disso, podemos concluir que alguns dos bailadores nunca fizeram parte de grupos folclóricos. Por outro lado, temos noção de que as festas de verão atraiam população exterior ao lugar/concelho, sendo expectável que a diáspora emigrada nas grandes cidades portuguesas ou noutros países esteja de volta à terra.
Nada de traje nestes momentos bailatórios, as pessoas estão vestidas normalmente. Nos vídeos realizados em romarias e outras festas de verão, observam-se bastante camisas bordadas à minhota, junto com calça jeans, saias ou calções, supomos que tenha a ver com uma vontade de mostrar o apego à sua região de origem.
Do lado da música, as concertinas dominam os ajuntamentos e são acompanhadas por idiofones, tal como o reco-reco e as castanholas (muitas vezes tocadas pelos próprios bailadores), e pelo cavaquinho (que se ouve pouco).
Comparando as coreografias dos grupos folclóricos minhotos com o que se vê nos momentos bailatórios, o nível de complexidade é muito mais reduzido. Para cada uma das danças encontradas – Vira, Chula, Cana Verde/Malhão -, existem duas ou três partes que alternam consoante a vontade do mandador. Encontramos pouca variabilidade, fora a formação inicial das danças (Vira em quadrilha aqui, Vira em linha aqui) ou ainda a possibilidade de trocar de par, como neste Vira aqui.
Mesmo que não exista similaridade flagrante ao nível da coreografia como um todo, no que toca aos movimentos e aos passos, encontram-se muitos pontos em comum. A figura do par – homem/mulher – é central. Dançam frente a frente, lado ao lado, o par pode estar agarrado de diferentes formas e até não se tocar. Rodopiam juntos ou separados. Circulam na roda ou, ao contrário, efetuam movimentos no mesmo lugar. A figura do par é complementar ao grupo, uma vez que todos os pares devem realizar os mesmos movimentos ao mesmo tempo, consoante o que o mandador indicar. Dito isso, pode surgir alguma variação entre os bailadores presentes. Neste caso, não interfere com a lógica do grupo. A variação será ao nível da execução do passo ou no tipo de contacto entre os pares. Assim, quando um bailador toca castanholas, o seu par tem que adaptar a pega para não interferir.
Enfim, o andamento das músicas parece ser o mesmo, bastante acelerado.
A presença do mandador não se limita ao contexto bailatório. Em alguns vídeos de grupos folclóricos, ouvimos uma voz que se aparenta a um mandador, como por exemplo na Cana Verde Velha executada pelo Grupo Folclórico de Vila Chã Santiago (no vídeo a partir de 8min.30). Outra forma de indicar a introdução de um novo movimento é o bater sonoro do pé no chão, como na Chula executada pelo grupo Folclórico de Azias (no vídeo a partir de 4min).
Olhando agora para a caracterização do repertório regional feita por folcloristas o Vira, a Chula e a Cana-Verde/Malhão são destacados. Segundo Tomas Ribas (1982), Pedro Homem de Mello identificou três géneros de dança para o Minho: o Vira, a Chula e o Malhão. Associa o Vira ao Alto Minho e o Malhão ao Baixo Minho. Em oposição Norte-Sul, sobrepõe uma oposição Oeste-Este ou Litoral-Interior. Neste caso Homem de Mello situa a Chula no interior do Minho. Olhando agora para a categorização do Alto e Baixo Minho, nota-se que Ponte da Barca fica no Baixo Minho Interior segundo este autor. Será assim o lugar de predileção para o Malhão e a Chula.
Quando abordado a partir das fronteiras administrativas, o distrito de Viana do Castelo, ao qual pertence Ponte da Barca, está associado ao Vira. Tal como Jean Michel Guilcher disse, no caso da França, as práticas expressivas pouco importam com as divisões administrativas e, tal como é sabido hoje, apesar do Vira ser associado ao Minho, este existe de norte a sul do país.
Outro folclorista especializado sobre o Minho, Gonçalo Sampaio, dividiu o cancioneiro minhoto em quatro grupos, um deles sendo dedicado ao canto que acompanha a dança. Segundo Susana Sardo (2009, p.431), este grupo “inclui as danças de roda, acompanhadas exclusivamente por vozes cantadas, e outros géneros que incluem acompanhamento instrumental como os viras e os fandangos, que considera de «sabor arcaico». Também a esta categoria Sampaio associa outros géneros coreográficos que acredita terem origem mais moderna (início do século XIX), como a xula, a vareira, a cana-verde e o malhão.”
Na “Enciclopédia da música em Portugal no Século XX” (Castelo-Branco, S. S.(ed.), 2011), cada uma destas danças tem entrada própria, com descritivo sobre a parte musical e sobre a parte coreográfica.
O Vira
O Vira caracteriza-se por um compasso de quatro tempos, com subdivisão ternária do tempo (12/8). O padrão rítmico é uma sucessão de semínimas pontuadas, excepto o terceiro tempo do compasso, mais acentuado (semínima e colcheia). O passo privilegiado é o “passo de valsa”, ou seja um conjunto de 3 trocas rápidas de pé, mas com o apoio mantido sobretudo numa perna (padrão EdE ou DeD – Maiúscula: passo, minúscula: saltinho/elevação de calcanhar; D: perna Direita e E: perna Esquerda). Para facilitar a compreensão, foca-se apenas na alternância entre a perna de apoio Esquerda e Direita, uma vez que está muito marcada no Vira. Um Vira resume-se assim à alternância EDED.. etc. Cada passo E ou D corresponde a um tempo musical.
Tal como explicado acima, o Vira implica vários pares a bailar ao mesmo tempo, havendo alguma variação ao nível da formação espacial, mesmo no caso do Vira Mandado em contexto não folclórico.
Para nós, o que identifica um Vira não é o título que é dado a uma peça, mas o facto da música e da dança corresponderem ao conjunto dos elementos introduzidos até agora. Ou seja, apesar de não ser identificada como tal, o tema famoso da Rosinha é um Vira.
No repertório dos grupos folclóricos, encontra-se o Vira Geral que é a versão mais próxima do Vira Mandado. Nesta peça, os membros do público são convidados a subir no palco para bailar junto com os membros do grupo folclórico.
Exemplo de Vira Geral executado pelo Grupo Folclórico de Lindoso, com o público. No vídeo a partir de 15min.40.
VIRA MANDADO, DESCRIÇÃO DA VERTENTE COREOGRÁFICA
Exemplo de Vira Mandado
O Vira Mandado é composto por três partes distintas A, B, C, anunciadas sempre na mesma ordem. Na forma mais frequentemente encontrada, trata-se de uma roda de pares que circula em sentido anti-horário. A parte A corresponde ao momento em que os pares, frente a frente, circulam na roda, o homem avançando e a mulher recuando. A parte B inicia-se depois de ouvir a voz do mandador. Os pares passam a realizar deslocações laterais, fazendo meias-voltas. A parte C inicia-se depois de ouvir novamente o mandador. Em vez de meias-voltas, os pares realizam voltas inteiras sobre si. Durante as três partes, os pares ficam frente a frente e nunca se tocam.
Aprofundando um pouco mais as partes B e C, nota-se que as figuras de meia volta e de volta inteira são realizadas em espelho. O homem e a mulher deslocam-se ao mesmo tempo para fora da roda, rodopiando no sentido anti-horário e vão para dentro da roda no sentido horário. A figura da meia volta é executada 4 vezes e a volta inteira 3 vezes. As duas figuras necessitam de três passos valseados para serem realizadas. Relembramos que a música é um 12/8 (pulsação 85 BPM). A cada tempo, realiza-se um passo valseado, alternando entre o apoio na perna esquerda ou na perna direita. Na parte A, alterna-se entre E e D: EDEDEDED. Quando o entende, o mandador grita três vezes seguidas, mas somente quando está com apoio na perna esquerda (indicação para o homem). A parte B tem início no apoio seguinte ao último grito, com a perna direita. Corresponde a 4 meias voltas cada uma com 3 apoios ou seja DED/EDE/DED/EDE. A parte C implica 3 voltas inteiras, cada uma com 3 apoios, ou seja EDE/EDE/DED. Regressa a parte A começando com o apoio na perna esquerda (EDEDED). A voz do mandador surge quando os pares realizam a última meia volta da parte B. E vão-se repetindo sucessivamente as partes.
O chave para não se cansarem é saber suspender certas trocas rápidas do pé dentro do passo valseado. Na parte A, por exemplo, marca-se o primeiro apoio e uma elevação de calcanhar apenas (Ee, Dd).
A Chula e a Cana Verde/Malhão – como distingui-las?
Recuperando a maneira como definimos o Vira, torna-se mais complicado distinguir uma Chula de uma Cana Verde/Malhão. Alias, nem o conseguimos para a Cana Verde e o Malhão, daí acoplar estes dois nomes.
Na “Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX”, todas estas danças possuem um compasso com subdivisão binária do tempo (4/4). O padrão rítmico composto por dois compassos é tendencialmente o mesmo. O primeiro compasso é constituído por 3 semínimas e uma pausa de semínima. Para o segundo compasso, a única diferença é a passagem da segunda semínima em duas colcheias. A nível da harmonia, também nada as parece distinguir. No caso da Cana Verde e da Chula, o canto ao desafio é introduzido como possível acompanhante vocal.
Do lado coreográfico, o passo do Malhão é a sucessão de 3 passos e 1 saltinho executado na mesma perna de apoio que o terceiro passo (padrão EDEe, DEDd – Maiúscula: passo, minúscula: saltinho/elevação de calcanhar; D: perna Direita e E: perna Esquerda). Segundo a entrada na Enciclopédia já citada, a Cana Verde usa o mesmo passo. A descrição das figuras não ajuda a distingui-las uma vez que não existe um padrão reconhecível. Com efeito, tanto a entrada do Malhão como a entrada da Cana Verde baseiam-se na análise da prática folclórica, onde a variação e a complexidade são a norma.
Nos vídeos encontrados na zona de Ponte da Barca, parece que Cana Verde é a expressão mais usada.
Talvez a distinção seja apenas ao nível da zona onde é dançada. Não sabemos ao certo. Esperamos, no entanto, que este projeto permita esclarecer esta questão.
Podemos distinguir a Chula ao nível do passo que implica saltos de um apoio para o outro. Além disso, o avanço e recuo dos pares é identificado como sendo um recurso coreográfico bastante frequente. Para continuar, Margarida Moura explica que a Chula implica contacto com o par quando volteiam, enquanto no malhão, a mesma autora sublinha a ausência de contacto.
No fim da entrada dedicada à Chula, a autora acrescenta que os seus movimentos “são mais precisos e definidos, assim como menos salteados e acentuados que no malhão”.
Da nossa parte, confirmamos que a coreografia da chula mandada e a da cana verde / malhão mandado são bastante diferentes, seja no passo, seja na formação espacial. No caso da dimensão musical, a chula faz-nos lembrar melodias de danças italianas, bastante ligeiras, com frases curtas e repetidas.
CANA VERDE/MALHÃO MANDADO, DESCRIÇÃO DA VERTENTE COREOGRÁFICA
Exemplo de cana verde/ malhão mandado
A cana verde ou malhão mandado apresentam-se como uma roda de pares, que circula sempre em sentido anti-horário. Aqui os pares não estão frente a frente, como no Vira, mas lado ao lado, a mulher ficando do lado exterior da roda. O homem e a mulher fazem o mesmo passo de malhão (conhecido como 1, 2, 3, hop), com apoios invertidos. Esta dança pode ser dividida em duas partes. A parte A consiste no passeio, ou seja os pares circulam na roda, sem se tocar. A voz do mandador surge e inicia a parte B. A mulher coloca-se frente ao par e continuam a avançar (agora a mulher anda ao recuo). Os pares agarram-se na parte superior do corpo (ombros, braços). Sempre circulando na roda, iniciam-se as voltas. Quando estão a realizar a terceira volta, ouve-se novamente a voz do mandador. Os pares regressam à posição inicial.
Aprofundando um pouco, é preciso contar os compassos para entender quando o mandador intervém. O compasso musical da Cana Verde/Malhão mandado é um 4/4, ou seja quatro tempos por compasso (pulsação 90 BPM). A estrutura musical corresponde à sucessão de ciclos de 4 compassos. A vertente coreográfica segue quase sempre estes ciclos.
A parte A é composta por 2 ou 3 ciclos de 4 compassos. Talvez seja possível ter mais, porque depende do mandador. Em cada ciclo, o segundo compasso corresponde ao momento em que o par efetua um quarto de volta em direção ao outro, criando uma pequena pausa no passeio. A parte B inicia com a voz do mandador. Esta surge normalmente no primeiro compasso do ciclo. No compasso seguinte – o segundo – em vez de um quarto de volta, a mulher posiciona-se frente ao par. Durante o resto do ciclo, continuam a avançar na roda. O ciclo seguinte é dedicado às voltas inteiras feitas com o par, voltas feitas em sentido horário. Uma volta inteira é executada durante dois compassos, ou seja, fazem-se duas voltas por ciclo. Inicia um novo ciclo com a terceira volta. Surge nesta altura a voz do mandador. Os pares acabam a terceira volta e regressam à posição inicial. Começa o primeiro ciclo da parte A. Dito isto, seria precisa uma quarta volta para fechar o ciclo, ou seja, cria-se uma divergência entre a estrutura da música e a estrutura da dança. Com efeito, a terceira volta dura apenas 2 compassos e não um ciclo inteiro de 4 compassos. Depois de realizar a parte A e a parte B, a estrutura coreográfica voltará novamente a encaixar com os ciclos da música. Ou seja, vez sim vez não, a divergência desaparece.
Para fazer uma volta inteira com o par, é preciso aproximadamente dois passos de malhão (com a contagem 1, 2, 3, hop) ou um padrão inteiro (EDEe, DEDd). É importante o homem e a mulher estarem com apoios invertidos para poderem realizar estas voltas.
No vídeo, aos 0.38 segundos, surge um casal que troca de lugar em vez de dar as voltas, mantendo o andamento para frente. Esta variante faz nos pensar na caracterização referida pela Margarida Moura em que assume que o malhão implica ausência de contacto com o par, o que não acontece aqui.
Será isso o que distingue a cana verde do malhão?
CHULA MANDADA, DESCRIÇÃO DA VERTENTE COREOGRÁFICA
Exemplo de chula mandada
A Chula Mandada apresenta-se como uma roda de pares. Como o Vira, os pares estão posicionados frente a frente. Neste vídeo, pode até ver-se como se forma a própria roda e se visualiza bem o mandador, um jovem com chapéu e casaco castanhos. Esta dança pode ser dividida em duas partes. A parte A consiste no movimento de avanço-recuo dos pares, tal como explicitado pela Margarida Moura. Depois de ouvir três vezes a voz do mandador, tem início a parte B. Os pares agarram-se e realizam voltas, primeiro no sentido anti-horário e depois no sentido horário. A parte B é repetida duas vezes. A repetição parece ser ditada pela voz do mandador.
Aprofundando um pouco, temos primeiro de caracterizar o passo-base. Este é constituído pela sucessão de um passo e um saltinho na mesma perna de apoio. Alterna-se de perna de apoio depois de cada saltinho (padrão EeDd – Maiúscula: passo, minúscula: saltinho/elevação de calcanhar; D: perna Direita e E; perna Esquerda). Na Chula, o homem e a mulher fazem o mesmo passo, com apoios invertidos.
A parte A é relativamente estática. O movimento de avanço e recuo implica que uma perna faça de pivô e que a outra avance ou recue. O pivô é a perna direita para o homem e a esquerda para a mulher. Os gritos do mandador são realizados quando este avança com a perna esquerda. A seguir ao terceiro, regressa-se à perna de pivô, recua-se ainda com a perna esquerda, e a parte B tem início. Aqui já não existe perna de pivô, mas o mesmo passo-base mantém-se. Duas voltas inteiras são realizadas em sentido anti-horário e uma terceira em sentido horário. Para executar as duas voltas para frente, é preciso fazerem-se 6 trocas de apoio (DdEeDdEeDdEe) e na volta para trás, 4 (DdEeDdEe). Antes de acabar esta ultima volta, a voz do mandador surge novamente. A mesma sucessão de 3 voltas é de novo executada. Para o homem, estas contagens de apoios iniciam-se sempre com a perna direita. A parte A regressa sem indicação do mandador. Começa-se com o primeiro apoio na perna que faz o pivô.
Para rodar, é preciso manter os apoios invertidos entre o homem e a mulher. O tipo de pega é feito para ajudar. No vídeo nota-se que a forma como se agarra varia bastante, alguns pares mostram-se mais estáveis do que outros.
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A Contradança no Baile da Pinha em Reguengos de Monsaraz.
O BAILE DA PINHA EM PORTUGAL
O Baile de Pinha (ou Pinhata) é associado à época que vai do Entrudo até à Pascoa. Numa pesquisa de internet, encontramos referências a este baile em toda a metade sul de Portugal: no Algarve, em todo o Alentejo, na Grande Lisboa e região de Setúbal, na Estremadura, no Ribatejo, e mais pontualmente na Beira Baixa. Encontramos também uma referência ao facto deste tipo de baile existir em Espanha. Citando um jornal de Elvas publicado em 1861 (o Transtagano), um jornalista da época assume que “este é o nome que tem o baile de máscaras que, no reino vizinho, pelo menos em Badajoz, costuma ter lugar no primeiro domingo de Quaresma” (Galego, 2010).
Em Portugal, trata-se de um baile popular em que um objeto em forma de pinha é pendurado na sala (ou colocado num mastro) e enfeitado com fitas. Numa determinada altura do baile, vários pares vão segurando nas fitas até que um par puxa a fita que faz abrir a pinha. Este par passa a ser o rei e a rainha e tomam o lugar dos anteriores. Esta primeira caracterização é bastante genérica e simples, uma vez que encontramos bastante variação, seja a nível da época em que se realiza (logo a seguir ao Carnaval, mais perto da Páscoa, em função das datas dos bailes organizados nas aldeias à volta), seja a nível de quem pode ser rei e rainha (só os solteiros, casados, inscritos, convidados…) ou a nível de quem organiza e paga pela festa. Hoje em dia, quem acolhe o baile é uma associação local que possui uma sede com um salão e um bar. Há também quem pague a banda e outras despesas associadas: a mesma associação e/ou o rei e a rainha.
A valsa tem algum destaque naquele baile. Com efeito, os reis promovidos no ano anterior podem abrir o baile com esta dança a par. A passagem entre os reis também pode ocorrer com a execução de uma valsa em simultâneo. De resto, trata-se de um baile “normal” exceto no distrito de Évora. Nos concelhos de Évora, de Reguengos de Monsaraz, de Alandroal, Redondo e talvez mais localidades, uma contradança é executada por um grupo de pessoas da própria localidade, antes do momento em que puxam as fitas da pinha.
A verdade é que o momento de puxar as fitas da pinha é alvo de encenação, o que pode implicar ou não a execução de uma dança. Assim, na página de facebook do Clube Recreativo Almornense (Sintra), fala-se de uma Dança da Pinha que pode durar uma hora, durante a qual um animador vai chamando os pares. Uma vez todos na pista, a pinha desce e todos pegam nas fitas. A referência à duração (quase uma hora), faz-nos pensar que talvez haja alguma prática coreográfica com todos os pares na pista, antes do momento de puxar as fitas da pinha.
No concelho de Reguengos de Monsaraz, que integra o Projeto de valorização dos bailes mandados, existe também o Baile do Cortiço que se aproxima do Baile da Pinha, à exceção do objeto a partir do qual serão definidos dois reis e duas rainhas, um cortiço. Acontece na mesma altura do ano e existe também uma alusão à contradança. De realçar que no plano musical, a contradança do baile do Cortiço implica quadras cantadas, o que não acontece no baile da Pinha.
De forma geral, encontram-se poucas menções escritas ao baile da Pinha. Num artigo sobre o baile popular na freguesia da Cabeça Gorda (Beja), Nunes (2008) considera o Baile da Pinha como um dos bailes mais importantes do ano, ao hierarquizar os bailes consoante o tipo de grupo musical convidado e o valor do seu cachet. No seu livro dedicado à Estremadura, Sardinha (2000) introduz também este tipo de baile, inscrevendo-o no seguimento da “Serração da velha”, mas distingue-o da contradança associada a outros contextos (arruadas ou cortejos de rua, tanto durante festas de verão como durante o Entrudo).
Na internet, encontramos várias tentativas de entender ou justificar porque se dança na altura da Quaresma, uma vez que o período entre o Entrudo e a Páscoa é muitas vezes associado à penitência e à abstinência. De facto, a organização de um baile nesta altura do calendário religioso pode ser interpretado como indo contra a ideologia da Igreja Católica. Para contrariar esta aparente oposição, podemos dizer que a prática religiosa em Portugal é o resultado de uma negociação constante entre a Igreja e o povo. Neste sentido, haverá épocas mais ou menos propícias para a expressão de uma religiosidade popular onde a dança tenha lugar (ver o artigo dedicado às danças mandadas no Minho, e em particular a referência à investigação de Sanchis (1983) sobre o lugar da dança na romaria). Por outro lado, considerar o baile como uma prática social de divertimento (ou seja uma prática profana) pode ser limitativo. O caso do Baile da Pinha em Reguengos de Monsaraz é um bom exemplo para destacar a dimensão ritual associada ao baile e assim relativizar a oposição inicial.
DA CONTRADANÇA AO BAILE
A contradança como género coreográfico global
Definir o que é uma contradança é tarefa árdua. Pensando na questão da origem, existem duas fontes distintas (a corte inglesa e a corte francesa) e uma multitude de apropriações e adaptações em todo o mundo, uma vez que este género coreográfico caracteriza-se por um conjunto de danças inventadas ou adaptadas ao longo dos seus 250 anos de vida (1650-1900). A título de exemplo, na página wikipedia da contradança na Escócia fala-se em 15000 danças distintas.
De uma certa forma, trata-se do primeiro género coreográfico a atingir uma escala global, seguida pelas danças a par (valsa e polca). Este fenómeno atravessa todas as classes sociais, da aristocracia aos escravos em tempos coloniais (Khatile, 2005), dos citadinos aos rurais (Guilcher, 2004). A difusão nos cinco continentes deve ser entendida à luz da mobilidade acrescida, que se faz sentir nos séculos XVIII e XIX. Existem movimentos migratórios importantes, em particular da Europa para as Américas, em que as pessoas trazem as suas vivências para o local de chegada. Por outro lado, as elites viajam e seguem a moda e etiqueta comportamental ditada pela cultura francesa. Os empregados domésticos assistem aos encontros mundanos, ficando a conhecer estas novas práticas expressivas e difundindo-as.
A investigação torna-se ainda mais difícil porque existem numerosas formas de nomear este género. Além da sua tradução – country dance, contredanse, contra dancing – existem muitos outros termos usados, tal como quadrille, cotillon, square dancing, ceilidh dance, Scottish country dance, Irish set dance. Esta variação não reflete apenas tradições nacionais. Por exemplo, num mesmo país podem ser usados vários termos, como acontece em Portugal (contradança e quadrilha).
Falando da performance em si, Guilcher (2004) define este género coreográfico a partir de duas características: o facto de privilegiar as relações interpessoais entre os bailadores e o facto de valorizar as deslocações em detrimento dos passos. Traduzindo esta ideia numa imagem, podemos compará-la a uma visão caleidoscópica. Observando os pares a dançar de um ponto de vista omnisciente, podemos dizer que se aproximam de um objeto geométrico composto, em 3D e em movimento, implicando jogos de simetria e alternância entre curvas, linhas, círculos, quadrados, espirais, etc…
Aprofundando a caracterização deste género, existe variação no que toca ao tipo de formação (duas linhas, cortejos, roda de pares, roda dupla, quadrilha, etc.) e o tipo de passo (consoante a música).
Abordando agora a ideia de adaptação ou invenção de novas danças ao longo dos tempos, a figura do mestre de dança é central. Este ensina as coreografias às elites, realiza a notação gráfica de cada dança e publica tudo sob a forma de tratado ou manual de dança. Mas o mais importante é que o mestre de dança também inventa novas danças. Para isso, tem acesso a um conjunto de figuras coreográficas que podem ser combinadas de diferentes formas. Pode inventar novas figuras, simplificar ou complexificar antigas contradanças, ou criar novas sequências de figuras; alterar o tipo de música associado a uma contradança; ou ainda introduzir adereços (lenço, arcos, flores) para enfeitar a performance. A inovação parece ser constante. Na sua tese dedicada à contredanse, Guilcher (2004) mostra como se passa da contredanse à quadrille por alterações sucessivas, através de processos de fixação, simplificação e encurtamento da coreografia. Hoje a quadrille francesa faz referência à seleção de cinco contradanças distintas, cada uma com uma sequência de figuras específicas, podendo ser usado dois tipos de formação espacial (um quadrado com quatro pares ou com oito pares).
A nível musical, a contradança não possui limitações, senão a de garantir que a estrutura rítmica e métrica seja adequada a determinada dança. Assim, o ritmo da valsa pode ser usado para dançar uma contradança. Na Escócia, por exemplo, existem aparentemente três tipos distintos de contradanças consoante o acompanhamento musical (reel, strathpey e jig).
A função social do baile oitocentista
Com a caracterização que fizemos, sabemos pouco sobre o que move as pessoas a bailarem umas com as outras, sobre o como e o porquê da apropriação e adaptação de uma determinada contradança por um determinado tipo de população. E menos ainda, sobre o porquê da sua permanência ao longo do tempo ou da sua revitalização mais recente. Alguns estudos evidenciam a função social do baile nas elites oitocentistas, permitindo criar um sentido de comunhão entre quem pertence à mesma classe (independentemente da nacionalidade) e ao mesmo tempo um sentido de exclusão, em relação às outras classes que não partilham os mesmos hábitos culturais. Canaveira de Campos (2010) analisou os tratados de dança publicados em Portugal, os primeiros datando de 1760. Até meados do século XIX, apenas se fala em contradanças, a seguir são introduzidas danças a par e danças provenientes das Américas. Mesmo assim, a contradança e os seus avatares (quadrille e cotillon) mantêm-se nos tratados de dança até início do século XX . Claro que aqui as referências são a corte e as elites portuguesas que podem pagar para aprender com um mestre de dança ou comprar um manual de dança.
O baile torna-se um dos pilares da sociabilidade oitocentista e, com o tempo, acaba por não ser uma prática exclusiva das elites.
Não temos conhecimento de fontes que permitam entender como a contradança se instalou no Alentejo e porque foi inserida no Baile da Pinha em alguns concelhos do distrito de Évora. Através de Sardinha (2000), sabemos que Picão (1983) fala em contradança mandada em francês em aldeias da zona de Elvas, no seu livro publicado em 1903. Em 1890, Soeiro de Brito fala na invasão das danças francesas que substituem as danças até agora bailadas, também na zona de Elvas. Nestas duas fontes, não entendemos claramente de que tipo de população estes autores estão a falar.
Como a contradança se difunde no território português, nas cidades e no campo? Como atravessam as diferentes classes sociais? Existem muitas incógnitas ainda. No caso da França, Guilcher (2004) associa a penetração da contredanse nas zonas rurais ao período cumprido entre 1830 e 1850, acrescentando que em algumas zonas (zonas de trocas comerciais e zonas de termalismo) começou no fim do século XVIII. Num sentido oposto, o autor declara que a contredanse nunca foi introduzida em certas zonas de França. Em Portugal, podemos imaginar que a difusão da contradança no território seja posterior a 1834, acompanhando a implantação do liberalismo. Por outro lado, o testemunho de Soeiro de Brito, publicado em 1890, faz-nos pensar que as danças as quais se assiste foram apropriadas recentemente, ou pelo menos que ele presenciou esta mudança.
Em todos os casos, o baile do século XIX é associado a novas sociabilidades e à criação de espaços de convívio onde as classes não se misturam. Esta estratificação social parece ser uma constante em Portugal, seja diferenciando a aristocracia da burguesia, seja diferenciado estas elites das outras classes sociais. Este fenómeno parece manter-se no Alentejo até meados do século XX. Cutileiro (1971) aponta para vários fatores de distinção, tal como o acesso à terra (proprietário ou não), a forma como se trabalha a terra (por conta de outrem ou por conta própria), as estratégias de aliança (casamento) e a localização no concelho (Monsaraz, as freguesias rurais e a Vila “Nova” de Reguengos).
A função ritual do baile em Reguengos de Monsaraz
Propomos aqui refletir sobre o que representa este Baile da Pinha para a população local atualmente e entender melhor o porquê da sua vitalidade e, em alguns casos, da sua revitalização.
Olhando para o decorrer do evento performativo no seu todo – o Baile da Pinha e a contradança – há vários elementos que nos fazem pensar que este tipo de baile possui uma função ritual que vai para além da função social já abordada. A contradança é dançada pelos jovens adultos da aldeia, com idade para se casarem, mas ainda solteiros. Apresentam-se publicamente à frente de toda a aldeia, dançando e agarrando nas fitas da pinha. O par que passa a ser o rei e a rainha é escolhido entre os bailadores e existe cada ano um novo par real. A continuidade deste evento, ano após ano, é ilustrada pela passagem de testemunho entre os pares reais. Do lado das obrigações, os que integram a contradança fornecem doces e bebidas ao resto da aldeia. Para o par real, os encargos podem ser maiores ainda, ficando responsáveis pela organização da festa. Por fim, outro elemento de continuidade é assegurado pelo mandador ou mestre que se responsabiliza pelos ensaios da contradança, ou seja pela transmissão da vertente coreográfica.
Apesar de existirem personagens ou “mascarados”, estamos longe da dimensão extraordinária do Carnaval. Entre a ideia de continuidade dentro da comunidade e a exposição de uma parte da população (os jovens) ao resto da aldeia, aproximamo-nos, a nosso ver, de um rito de passagem, em que os novos adultos são apresentados à aldeia. Na contradança, existe uma diferença entre quem está a bailar e quem vê, sendo que grande parte do público passou pela mesma situação anteriormente. Neste sentido, a incorporação da contradança pode ser vista como a aceitação das convenções sociais da aldeia. A seleção de um par real anualmente pode ser ainda realizada dentro de um sistema rotativo, em que duas famílias se responsabilizam pela festa, contribuindo e reafirmando a sua pertença àquele lugar.
Claro, esta descrição refere-se mais ao passado, uma vez que foram introduzidas alterações na festa (a nível de quem participa e de quem organiza). Hoje no Alentejo, temos territórios rurais que sofrem de êxodo dos jovens e do envelhecimento da população. Neste contexto, que ameaça a sobrevivência de aldeias e lugares, este tipo de ritual parece tornar-se ainda mais necessário para alimentar o sentido de pertença à comunidade. A festa padroeira é outra ocasião de comunhão entre os moradores da aldeia e os emigrantes de regresso à terra natal, mas neste caso a juventude não desempenha um papel tão central como no Baile da Pinha.
A CONTRADANÇA EM REGUENGOS DE MONSARAZ
Três teses de doutoramento em ciências sociais e humanas incidem sobre o concelho de Reguengos de Monsaraz: A Portuguese Rural Society de José Cutileiro (1971) (traduzido para português em 1977); Os proprietários da sombra: Vila Velha revisitada, de Francisco Martins Ramos (1992); e Da voz lírica do Alentejo, contributo para o estudo da Literatura Oral e Tradicional de Reguengos de Monsaraz, de Lina G. D. Mendonça (2018). Permite conhecer o contexto social daquele concelho e, no caso da última tese, permite aceder a bastante informação sobre os bailes e a contradança. Mendonça (2018) fez a sua pesquisa de terreno no ano 2011 e localiza estes bailes na freguesia do Corval (Bailes da Pinha e do Cortiço em São Pedro do Corval), na freguesia de Campo e Campinho (Bailes da Pinha e do Cortiço em Campinho) e na freguesia de Monsaraz (Baile da Pinha em Outeiro e Motrinos; Baile do Cortiço em Outeiro e Barrada). Por outro lado, recolheu memórias destes bailes noutras localidades, nomeadamente em Telheiro (Monsaraz) e Perolivas (Reguengos).
Em 2021, a PédeXumbo realizou várias entrevistas para conhecer melhor a realidade do concelho e registou, além dos já citados, a existência de um Baile da Pinha na Barrada (Monsaraz) e em São Marcos do Campo (Campinho).
A dimensão coreográfica da Contradança
Na sua tese, Mendonça (2018, p.186) introduz as memórias do antropólogo Francisco Martins Ramos (2012) sobre um Baile de Cortiço na vila de Monsaraz. Insistindo no facto de já não acontecer há muito tempo, era constituído por 14 pares, jovens oriundos da vila e das aldeias à volta. A descrição da contradança no livro de Ramos é bastante detalhada. Faz alusão ao acordeão, às marcações (mandos) e a um mestre de sala. Além disso, associa a coreografia a dois tipos de dança, por um lado os bailes de roda e por outro lado as danças de salão dos séculos XVIII e XIX. A nosso ver, o que o autor associa aos bailes de roda (figuras geométricas e dar as mãos) pode corresponder também às ditas danças de salão.
Mais a frente, Mendonça (2018, p. 512-213) cita na parte referente às cantigas de roda, o autor Soeiro de Brito (1889): “Ou os pares caminham atraz uns dos outros em circunferência. Ou os pares caminham atraz uns dos outros em circunferência, e cada homem, do lado de fóra da roda, conduz a mulher, travando mão direita com mão direita e mão esquerda com mão esquerda, marchando ambos ao lado um do outro; ou, as mãos ainda do mesmo modo entrelaçadas, cada homem se vira para o seu par caminhando lateralmente ambos e todos os pares; ou finalmente cada homem dá a mão direita ao seu par, que lhe dá a esquerda, e toma com a sua esquerda a direita da mulher que lhe fica d’esse lado formando todos os dançantes, virados para o centro, uma roda singela, em que alternam os homens e as mulheres.” A seguir a esta citação, Mendonça acrescenta: “Em qualquer um dos três modos, apresentados por Soeiro de Brito, a roda caminha para a direita, enquanto se cantam os dois primeiros versos da cantiga (geralmente, eram repetidos), e caminha para a esquerda, enquanto se cantam os dois últimos versos (que também se repetem). Refere, ainda, que, quando a cadência da música indica o passo de polka, dança-se de acordo com o primeiro e terceiro modo; quando sugere a valsa vagarosa ou rasteira, é usado o segundo modo na dança. É no primeiro modo que se emprega a valsa apressada ou pulada.”
Neste exemplo também, não se percebe bem porque estas danças são referidas como cantigas de roda. Com efeito, fala-se em polca, em valsa e em dança com progressão. Fala-se em figuras coreográficas com elementos geométricos e com diferentes tipos de pega. Ou seja, trata-se de algo muito semelhante à definição da contredanse. A única diferença é o facto de introduzir o canto como acompanhamento musical (veremos mais à frente que esta associação existe em diferentes zonas de Portugal).
Nas entrevistas realizadas em 2021, Almerindo Carapeto descreve a coreografia executada em São Pedro do Corval da seguinte forma: “Cada par começa a dançar normalmente (1), e depois começamos a formar, neste caso, uma circunferência a dançar com o par (2), formamos uma circunferência até que à voz, à ordem de quem ensaiou, quem está a mandar, ficam de mão dada (3), formam a roda e depois começa-se a desenvolver a coreografia, depois desfila-se de braços dados (4), cruzam-se os pares (5), troca-se de par várias vezes (6), há uma situação em que a rapariga corre os rapazes todos… em que vai-se de braços dados em circunferência, na mesma elas avançam para o par seguinte… depois cumprimenta-se, dança-se e não sei o quê… e vai passando assim pelos pares todos. Pronto, há uma série de desenhos que se põem em prática sempre com um par, com o nosso par (7), que tirando essa exceção que em que se passa pelos pares de todos, o nosso par anda sempre de braço dado ou abre para depois cruzar ou qualquer coisa do género… ou de mão dada para fazer a ponte (8) e os outros passarem por baixo… Uma série de desenvolvimentos da coreografia, que também já não é toda aquela de origem, porque às vezes vai-se fazendo pequenos ajustes (9) ou tira-se uma parte, porque não se conseguiu fazer ou acrescenta-se qualquer coisa de novo para não ser sempre igual, mas a estrutura base, basicamente, é sempre, passo a redundância, basicamente a mesma.”
A descrição apresenta claramente o início da contradança: (1) pares soltos na sala, (2) roda de pares, até que a voz do mandador surge para formar (3) uma roda simples, de mãos dadas. Várias figuras que implicam deslocações são introduzidas: (4) cortejo com pares de braços dados, (5) pares cruzam-se e trocam de lugar, (6) mulheres trocam de par até regressar ao par inicial. Insiste-se no facto da maioria das figuras serem realizadas com o seu par (7), tal como a figura dos “Arquinhos” (8). Assim, introduz-se a ideia de que a sequência ensaiada não é sempre a mesma (9). Segundo Armindo Carapeto, a contradança dura mais de uma hora, são cerca de 40 minutos para a execução da coreografia e o resto para distribuir e puxar as fitas da pinha.
Armindo Carapeto introduz também a figura do “Cesto”, que implica a criação de duas rodas: a roda interior que é constituída por mulheres e a exterior por homens. A evolução a partir desta figura varia, mas passa sempre por cruzar as duas rodas. A escolha da palavra “Cesto” provém da tradução literal da figura da contredanse corbeille. Esta imagem faz sentido porque o motivo criado pelos braços entrecruzados faz lembrar a trança de um cesto.
No caso da contradança em São Pedro do Corval, as mulheres acabam por sentar-se nos braços dos homens e estes devem levantá-las do chão. Em função da idade e do peso dos bailadores, tal evolução pode ser complicada a realizar, levando assim à sua não integração.
Em Outeiro, a figura do Cesto é chamada de “Abraço”. Rui Gato considera esta figura como o ponto mais alto da contradança. Antigamente, esta podia durar até duas horas. A coreografia era repetida duas vezes, primeiro com arcos e depois sem os arcos. Hoje, está reduzida a uma hora e já não se repete duas vezes.
No Campinho, Dalila Capucho fala de uma coreografia que dura 20 minutos atualmente, quando antes durava 40 minutos, justificando a redução com o facto do público sentir algum aborrecimento pelo facto da coreografia ser muito repetitiva.
Em 2012, a PédeXumbo fez uma primeira abordagem ao Baile da Pinha. Mercedes Prieto tinha assistido a ensaios em São Pedro do Corval e tinha entrevistado José Conde e o mandador António Casco. A coreografia reportada é uma sucessão de figuras com evolução no espaço, implicando bastante variação no que toca à formação espacial dos bailadores (roda simples, roda dupla, duas rodas, cortejo, uma ou duas filas, duas linhas), que relembra o testemunho de Armindo Carapeto. Prieto (2012) introduz a tal figura que implica que as mulheres vão dançar sucessivamente com todos os homens. Cita também a figura do “Enleio” ou Grande chaîne. Trata-se de uma roda simples, os homens estando orientados no sentido da roda e as mulheres no outro. Frente a frente com o seu par, os homens e as mulheres dão a mão direita ao par e avançam. Contornam o par, largam a mão e a seguir apresentam a mão esquerda à mulher/homem seguinte. Avançam até chegar novamente ao par inicial.
Apesar de haver alguma variação, existem muitos pontos em comum entre as diferentes contradanças descritas, como por exemplo as figuras da contradança (Enleio, Arquinhos, Cesto) e sobretudo a alternância entre as várias formações espaciais. O que nos surpreende é a referência temporal da contradança, que pode durar de 15-20 minutos a 2 horas.
Tentativa de sistematização da informação relativa à coreografia da contradança
Complementando com a análise de vídeos encontrados online, podemos apresentar alguma sistematização da informação, que será confirmada ou não no futuro.
A estrutura da contradança inclui uma entrada encenada dos bailadores na pista de dança, a coreografia propriamente dita, e uma parte dedicada à escolha dos pares reais com a descida da pinha ou do cortiço. Não existe uma só forma de entrar na pista nem uma só forma de convidar os pares a tirar nas fitas penduradas.
No que toca à coreografia, existe também uma estrutura mais ou menos fixa. Para o Baile da Pinha, podemos definir a coreografia como a alternância entre duas partes distintas: A e B. A parte A é sempre a mesma e é composta por uma ou duas figuras. A parte B varia sempre, sendo que nunca são executadas as mesmas figuras. No caso do Baile de Cortiço, é preciso acrescentar uma terceira parte – C- que não varia. No vídeo encontrado, trata-se da altura em que a música pára, para deixar lugar ao canto à capella. Claro que existem exceções e embora procuremos sistematizar a informação, temos consciência que a realidade é sempre mais complexa.
No que toca à execução das figuras, existem duas convenções comuns a todas. O grupo de bailadores é constituído por um conjunto de pares e cada par deve saber qual é a sua posição naquele conjunto. Com efeito, as figuras implicam deslocações e trocas de lugar, mas no fim da figura todos os pares regressam à sua posição inicial.
A segunda convenção incide na formação do par: uma mulher e um homem. Na maioria das figuras, as ações implicam que o par esteja junto. Porém, algumas figuras implicam dois grupos, um de homens e outro de mulheres, ou até troca de pares. Em todos os casos, uma figura acaba como começou: cada um ao lado do seu par.
Deixamos de seguida alguns comentários a partir dos três vídeos que foram filmados no concelho de Reguengos de Monsaraz.
Baile de Cortiço em Outeiro (2010)
Música: Alecrim (ou Alecrim Dourado – canção popular) e Valsa de Meia-Noite, tocados ao acordeão.
A contradança é formada por 14 pares e um mandador que pode estar também na roda.
Podemos organizar a coreografia de quase 50 minutos em 12 seções distintas. Cada uma das seções é formada por 3 partes: A, B e C.
Parte A: Começa com a formação de uma roda simples com mãos dadas (e troca do sentido da roda), que evolui para uma roda simples facial – lateral que corresponde à figura do Enleio.
Parte C: inicia-se com a formação de uma roda simples, seguida por um momento cantado à capella. Nesta altura, a música e a roda páram, todos os bailadores apontam para o cortiço. Uma pessoa canta uma quadra e os dois últimos versos são repetidos por todos os bailadores.
Parte B: Varia sempre e inclui diferentes figuras com múltiplas evoluções, podendo durar mais ou menos tempo. Forma-se um rectângulo, uma roda dupla, criam-se cortejos, filas, linhas, várias rodas. Repetem-se figuras inteiras. Troca-se de pares. Reconhecem-se figuras conhecidas, tal como os Arquinhos, o “Caracol” (em forma de espiral) e o Cesto.
A estrutura apresentada acaba com a seção 9. A música muda para uma valsa. A roda simples mantém-se parada e, um par de cada vez, vai valsear no centro da roda. Regressa a marcha a seguir. A partir da seção 9, entramos na fase final da contradança. A seção 10 é composta por três alternâncias entre a parte A e B e acaba com a parte C. No último B, é nomeado um par que vai para o centro da roda. Coloca-se uma mesa no centro. O cortiço desce na parte C. A seção 11 limita-se à sucessão das partes A e C. O cortiço é serrado e retiram-se objetos deste. Vê-se o início do que se pensa ser a seção 12, mas o vídeo online pára antes da ação terminar, no momento em que os pares formam uma roda simples.
Baile da Pinha em Outeiro (2011)
Música: marcha e valsa desconhecidas, tocadas no acordeão
Este vídeo inclui uma entrada encenada. Os 12 pares entram na pista com arcos e formam duas linhas. O rei e a rainha passam por baixo dos arcos e bailam sozinhos uma valsa. Quando se ouve a marcha, o grupo de bailadores entra com os arcos, formando um cortejo que se desloca no espaço. Supõe-se que o mandador seja o senhor de camisa azul. Deixam os arcos de lado.
A coreografia desta contradança é constituída pela alternância entre duas partes – A e B -, salvo no início, onde não há esta alternância tão rígida.
Parte A: Forma-se uma roda simples de mãos dadas e alterna-se o sentido da roda. A seguir, forma-se um rectângulo (dois lados com 2 pares, 2 lados com 4 pares). Os dois lados com 2 pares avançam, cumprimentam-se e recuam. Os dois lados com 4 pares fazem o mesmo a seguir.
Parte B: Varia sempre. Inclui formações espaciais tais como a roda dupla, o cortejo, a fila, o rectângulo (com várias evoluções), duas rodas. Reconhecem-se as figuras do Enleio, do Cesto e dos Arquinhos. Neste caso, o Cesto inclui o facto dos homens levantarem as mulheres do chão, o que provoca aplausos. Dança-se uma figura que implica uma roda dupla lateral: as mulheres, do lado de fora da roda, avançam para o par depois de cada apito, até voltar ao seu par inicial. Depois de uma breve deslocação com formação de cortejo, inverte-se o sentido da marcha e volta-se a criar uma roda dupla, desta vez com os homens do lado de fora da roda. Agora são os homens que avançam para o par seguinte depois de cada apito.
A meio da contradança, os pares recuperam os arcos até ao fim do vídeo. Mantêm-se a alternância entre uma parte A – fixa – e uma parte B – variável.
Baile da Pinha na Barrada (2013)
Música: marcha desconhecida tocada no acordeão
Trata-se de um pequeno excerto de contradança, composta por 12 pares, em que o mandador integra a roda, pois vê-se um senhor de camisa azul com microfone de lapela. A entrada efetua-se sob a forma de um cortejo até formar uma roda dupla lateral – o homem fica do lado de fora da roda.
A coreografia é constituída pela alternância entre duas partes: A e B.
Parte A: Realiza-se uma roda simples de mãos dadas (com mudança do sentido da roda). Larga-se as mãos e passa a ser uma fila que primeiramente mantém o desenho de uma roda.
Parte B: Varia sempre. Num intervalo de 10 minutos, foram introduzidas 5 figuras distintas, inclusive a figura do Caracol e do Enleio. Como no Baile do Cortiço, dança-se uma figura que parece um desenvolvimento do Enleio. Em vez de dar uma mão, o contacto faz-se pelo cotovelo (ou dando os dois braços no caso do Baile do Cortiço) e dá-se uma volta inteira com um par até avançar para o próximo par. As outras duas figuras incluem a formação de duas linhas (uma constituída por homens, a outra por mulheres) com movimentos de aproximação e cumprimentos; e uma roda dupla facial – mulher dentro da roda, homem fora, ficando frente a frente. Nesta formação, os homens correm todas as mulheres. Dão as mãos e cumprimentam cada uma delas, dando uma volta e avançando para a próxima.
Outros vídeos provém de concelhos à volta de Reguengos de Monsaraz: Fronteira, Torre de Coelheiros, Montoito. As figuras são similares.
A figura do mandador na Contradança
As descrições que incidem sobre a contradança fazem menção à existência de um mandador, a partir do fim do século XVIII. Guilcher (2004) fala da criação de pot-pourris, danças que juntam várias contradanças e figuras já conhecidas, sendo que a sucessão destas é definida por um par que lidera o grupo de bailadores. Aqui parece que o par exemplifica mais do que anuncia verbalmente os passos a executar. A componente verbal do mandador surge aquando da complexificação das coreografias, tornando-se difícil de recordar as sequências de figuras de cada uma das danças. Aqui o mandador tem como função auxiliar a memória dos bailadores. Num movimento inverso, a simplificação das coreografias pode levar ao desaparecimento do mandador, tal como o analisou (Sparling, 2018) numa região do Canadá. Outro fenómeno, observado do outro lado do Atlântico, é o facto do mandador se separar dos bailadores e subir ao palco para integrar o conjunto musical. Em alguns exemplos encontrados, a voz do mandador possui uma cadência própria e pode ser apreciado por si só (Square dance no Texas) . Este exemplo faz lembrar a performance do mandador no baile mandado algarvio, aproximando-se de um MC (Henrique Bernardo Ramos (1902-1977), mandador algarvio).
Em todos os casos até agora citados, o mandador não inventa sequências de movimentos, auxilia sim os bailadores para recordarem a ordem das figuras e não haver enganos. O mandador verbaliza as figuras ou as contradanças a realizar, com o pressuposto de que os bailadores já as conhecem. O sentido das palavras anunciadas pode ser literal ou codificado. Além da verbalização, o mandador pode também sinalizar a introdução de uma nova figura, sem especificar qual é, uma vez que os bailadores supostamente já a conhecem. Assim, na zona de Reguengos de Monsaraz fala-se em palmas ou em apito para indicar uma mudança de figuras.
O mestre Armindo Carapeto (São Pedro do Corval) assume que dança e manda ao mesmo tempo. Francisco Rato na Barrada explica que o mestre pode estar fora ou dentro do grupo de bailadores, sendo que, neste último caso, ficará geralmente à frente. Além de dar indicações, acaba por exemplificar os movimentos a realizar. Em São Marcos do Campo, Paulo Claro acha que não houve mestre. Quando a sociedade local decidiu recriar uma contradança, os seus elementos foram inspirar-se em bailes aos quais assistiram, inventando alguns passos num processo coletivo. Depois de ensaiado, Paulo Claro assume que não é preciso dar indicações, todos sabem e quem mais domina a coreografia fica a frente. Mas ao mesmo tempo, afirma que no passado havia a necessidade de dar indicações porque a coreografia era mais elaborada. Em Outeiro, o Baile da Pinha parou vários anos após a morte do mestre. Segundo Rui Gato, quando um grupo de amigos decidiu recuperar esta prática, foram ver as cassetes de vídeos onde se podia ver a filha do mestre, a fim de reconstituir a contradança. De Outeiro, Mendonça (2018, p.199-200) recuperou a cópia de um registo da estrutura do Baile de Pinha escrito pelo mestre Joaquim Miguel Rato. Segundo a sua mulher, Deolinda Caeiro Lopes, a contradança em Outeiro tinha 12 pares e o baile era composto por 14 “partes” distintas.
1º Par faz anavãm [continência] Todos fazem anavãm
2º Par faz anavãm cada par por sua vez
3º Par faz anavãm simples
4º O grande cham [chá] em cadeia [trocam os braços]
Descanso
5º Cavalheiros ao centro, madamas à retaguarda, todos dão um passo
6º Madamas ao centro, cavalheiro à retaguarda abraço [cruzam]
7º Balanssé simples
8º Elas passam por um lado e eles por outro
9º Balanssé balhando com todos os pares
10º Arco é em arco
11º Arco em valsa
12º Madamas ao centro. Cavalheiros à retaguarda
Puxar as fitas
13º Fazer a continência aos reis (feita por todos os pares)
14º e siga o grande baile
Como se vê neste registo, em Reguengos, o caráter codificado dos mandos passava pelo uso da língua francesa. Pois, fala-se no passado porque na maioria dos casos, os termos foram entretanto aportuguesados, a partir dos anos 1970. Esta situação não é inédita no Alentejo. Sardinha (2000, p.380) recolheu mandos ditos em francês numa contradança que foi bailada até aos anos 1940 na Lourinhã. Nogueira (2020) fala do mesmo para a contradança executada ainda hoje nas ilhas de São Nicolau, Santo Antão e Fogo (e diáspora), em Cabo Verde. Em todos os casos, parece uma aproximação ao francês (quando escrito e falado), uma forma de corruptela do francês que convive com expressões em português e em crioulo, para a contradança em Cabo Verde.
Neste exemplo em concreto, se compararmos com os nomes das figuras da contredanse ditas em francês, é bastante fácil entender que “Anavãm” equivale à figura En avant, “Grande cham” – Grande chaîne (com a tradução em português, cadeia). Hoje, as expressões foram traduzidas em português e os mandos explicitam a ação a fazer.
É de realçar que reconhecemos a maioria destas 14 “partes” no vídeo descrito anteriormente (Baile da Pinha em Outeiro). Os “Anavãm” correspondem às figuras com uma formação em rectângulo. A parte 5 “Cavalheiros ao centro, madamas à retaguarda, todos dão um passo” corresponde à figura que usa um apito para avançar um par para frente. Ou seja, estas “partes” correspondem apenas à “nossa” parte B.
Para descobrir os nomes das figuras da contradança em francês e entender qual tipo de formação e movimento fazer, aconselha a página Contredanse na Wikipedia.
A dimensão musical da Contradança. Reflexão sobre o que é tradicional e/ou popular.
Até agora, falamos da contradança enquanto dança e abordamos pouco a música que a acompanha. Apenas sugerimos que não existem grandes limitações, fora o facto de respeitar a estrutura métrico-rítmica da vertente coreográfica, tal como um eventual ciclo (por exemplo um ciclo de 8 tempos) ou uma cadência rítmica ligada a um tipo de passo.
No caso da contradança em Reguengos de Monsaraz, trata-se de uma marcha, ou seja uma música com métrica binária em que os bailadores simplesmente marcham. Sardinha (2000) evidencia o mesmo na Estremadura e sugere uma filiação direta entre a contradança e as marchas de Lisboa. Para ligar os dois, aponta-se para o facto da contradança ser muito usada para realizar cortejos, desfiles ou arruadas, ou seja, sublinha uma deslocação estilizada no espaço de um grupo de pessoas previamente ensaiadas. A palavra marcha também aparece nos discursos recolhidos pela Mendonça (2018), em Reguengos de Monsaraz, em particular no que toca às contradanças que eram cantadas durante o Carnaval e apresentadas por grupos de jovens, em diferentes aldeias.
Voltando à música do Baile da Pinha, os organizadores e ensaiadores de contradança entrevistados na zona de Reguengos de Monsaraz falam da contratação de um acordeonista que acompanha todo o processo (ensaios e apresentação do baile) ou pedem à banda contratada para tocar uma ou várias músicas que respeitam os padrões definidos anteriormente referidos. O desafio aqui é tocar durante os 45 minutos que pode durar a contradança. Nas músicas às quais tivemos acesso, notam-se temas famosos portugueses, alguns temas incontornáveis dos bailes populares, tal como o “Quem Será o Pai da Criança” popularizado pelo grupo Chave d’Ouro em 2010. A valsa tocada para destacar os reis da festa é geralmente identificada como sendo a Valsa da Meia-Noite, arranjada e popularizada em Portugal pelo grupo Os Tártaros (1964).
Torna-se interessante refletir sobre como a realidade contemporânea da música convive com a antiguidade pressuposta da vertente coreográfica. Não se trata aqui de interpretar uma certa subversão da tradição. Pois, o que esta situação ilustra, a nosso ver, é a necessária adaptação das práticas expressivas aos gostos de hoje. Aqui entramos nos limites da distinção entre o que é considerado popular ou tradicional. Vamos tentar explicar melhor.
A primeira abordagem à noção de tradição parte do princípio de que olhamos para o passado a partir do ponto em que nos encontramos, o presente. Pressupõe que existe uma ruptura entre duas sociedades: a sociedade portuguesa rural pré-industrial e a sociedade como a conhecemos hoje. A Federação do Folclore Português assume, assim, que o tradicional é anterior à implantação da República (Seromenho, 2003), por isso os grupos folclóricos só podem executar o que se bailava e tocava antes deste marco temporal. Continuando com este tipo de pensamento, há quem assuma que as tradições acabaram quando o modo de vida se alterou drasticamente. O que se vê hoje são reminiscências do passado ou consequências de processos de revitalização mais recentes.
A segunda abordagem à noção de tradição centra-se na ideia de que uma prática deve ser transmitida ao longo de várias gerações e que esta abrange grande parte de uma determinada população (uma aldeia, um concelho, uma região). Neste caso não existe nenhuma ruptura temporal pré-estabelecida, o que permite ver a contradança como tradição, apesar da modernidade da sua componente musical.
Outra oposição entre estas duas abordagens é a associação da tradição à uma dimensão fixa e estável versus dinâmica e lábil. No caso da primeira abordagem, a transmissão é vista como a reprodução do mesmo ao longo do tempo. No caso da segunda abordagem, a transmissão inclui mudança, alteração e inovação. A labilidade é a propensão de algo mudar no tempo. Retirando a dimensão pejorativa à qual é muitas vezes sujeita, a labilidade acaba por fundir duas ideias que parecem antinómicas: a permanência da identidade de algo e ao mesmo tempo a sua propensão em mudar. Assim, entende-se como a referência à contradança se mantém apesar da mudança na componente musical.
Não é a única alteração que encontramos no Baile da Pinha. Vários entrevistados dizem, por exemplo, que antigamente os mandos eram ditos em “francês” quando hoje foram aportuguesados. Explicam também que podem existir algumas alterações na coreografia, porque repetir o mesmo todos os anos é pouco desafiante. No que toca à organização da festa, as associações locais passaram a pagar grande parte das despesas do Baile da Pinha quando antigamente estava a cargo do rei e da rainha. A data em que ocorre o baile pode também mudar. Fala-se por exemplo da aproximação à Páscoa, para que os que não vivem na aldeia pudessem assistir ou até participar. Enfim, com a redução do número de jovens no Alentejo, juntar 10-14 elementos pode ser complicado. Neste sentido, recorre-se a jovens de outros lugares, a crianças ou então a pessoas casadas. Neste último caso, a adaptação é contextual. Existe a ideia de que a contradança é bailada pelos jovens do lugar, mas com a realidade demográfica atual é necessária uma adaptação para se manter a tradição viva.
A par com o tradicional, existe o popular. Aqui, a referência a um passado longínquo não é tão valorizada. Além disso, enquanto o tradicional é associado ao rural (em oposição ao urbano), o popular é mais abrangente e entra noutro tipo de oposição, baseada nas classes sociais (elite versus povo). O que prima aqui, é o facto da prática ser partilhada por um número máximo de pessoas possível, numa determinada altura, opondo-se a uma prática elitista, pouco acessível e não massificada.
Atualmente, o Baile da Pinha e o Baile do Cortiço, no concelho de Reguengos de Monsaraz, são realizados nas aldeias/lugares das freguesias rurais e estão ausentes da vila de Monsaraz e da cidade de Reguengos. Neste sentido, podíamos falar destes bailes como tradições. No entanto, Mendonça (2018) cita vários artigos publicados no jornal Éco de Reguengos durante a primeira metade do século XX, em que estes ditos bailes eram também localizados em Monsaraz e em Reguengos. Ramos (2012) partilha a sua experiência em assistir a um Baile do Cortiço na vila de Monsaraz. A realidade nunca é tão simples como parece.
De uma certa forma, identificar uma prática como tradicional, popular ou patrimonial depende da forma como a consideramos. Ou seja, pressupõe a existência de um julgamento baseado numa hierarquia de valores, em questões estéticas ou noutras dimensões (o facto de ser raro, de ser antigo, etc.). Visto pela positiva ou pela negativa, a realidade atual faz-nos acreditar que o Baile da Pinha no concelho de Reguengos de Monsaraz está a dirigir-se para uma abordagem patrimonial positiva, uma vez que está inserido na agenda de eventos do guia de turismo do município, da mesma forma que as festas padroeiras, as festas nacionais de inspiração religiosa, agrícola ou política, as feiras e outras manifestações culturais e desportivas mais recentes.
EM FORMA DE CONCLUSÃO
Ao insistir nas dimensões antigas e lábeis da contradança e do Baile da Pinha, queremos destacar o caráter transversal desta prática expressiva: tradicional e popular ao mesmo tempo. Olhando para outras danças mandadas em Portugal, esta situação não é única, pois a Valsa Mandada na Serra de Grândola, a Chamarrita nas festas da costa na ilha do Pico e a Contradança em Cinfães podem surgir nos bailes populares, no meio dos passadobles e outras danças a par. Em todos os casos, trata-se de práticas executadas fora do contexto folclórico, mas o que realmente singulariza a contradança bailada no concelho de Reguengos de Monsaraz é o facto da componente coreográfica ser acessível apenas à juventude e ter uma componente teatral forte. A contradança é para ser vista! Nos testemunhos recolhidos, nota-se a preocupação em adaptar a coreografia aos desejos do público, mas também à motivação dos bailadores.
Com o exemplo do Baile da Pinha e da Contradança, podemos também evidenciar uma realidade complexa, pouco linear e bastante dinâmica da dança social e do baile em Portugal. Nos testemunhos recolhidos tanto por Mendonça (2018), como pela PédeXumbo, ouviu-se muitas vezes que o Baile de Pinha parou e voltou. Segundo Almerindo Carapeto, o baile não existia na sua juventude, sendo que antes existia o Baile da Pinha, mas sem a contradança. Pediu ao seu pai para lhe ensinar a contradança e recuperou a tradição. Por outro lado, Paulo Claro fala da recuperação recente do Baile da Pinha e da contradança em São Marcos do Campo (em 2019). Isso mostra-nos como este tipo de prática expressiva mantém a sua importância, mesmo nos dias de hoje. Não se trata apenas de um baile como outro qualquer, existem outras preocupações que têm a ver com a questão da identidade, da pertença a um lugar. E talvez este baile levante a questão do futuro dos territórios do interior de Portugal.
Bibliografia
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À conversa com Sophie Coquelin
Coordenadora Científica do Projeto
Primeiro que tudo, e porque muitos não têm informação sobre esta prática, o que são Bailes Mandados?
Existe uma dança chamada “baile mandado” no Algarve, mas para este projeto, usamos o termo como categoria para cobrir diferentes danças que existem um pouco por todo o mundo. Têm em comum o facto de haver um mandador que anuncia figuras coreográficas a executar. Este mandador pode, por vezes, ser bailador ao mesmo tempo, ou ficar ao lado dos tocadores.
A figura do mandador ou marcador pode ser associada à contredanse, um género coreográfico que se difundiu a partir das cortes francesa e inglesa para todo o mundo, sob influência ocidental. Apesar de estar inicialmente ligada às elites, a sua difusão abrangeu todas as classes sociais, ao longo dos séculos XVIII e XIX. O mandador relembra a sucessão de figuras que constituem danças “complicadas” ou cria, no momento, uma nova sucessão de figuras, inédita. Isto corresponde à descrição do cotillon, um tipo de contredanse.
Há muitas variações dentro desta categoria de baile mandado, quer seja ao nível da função do mandador, quer seja ao nível da dança, pois a figura do mandador também aparece nas danças de par, tal como na rueda de casino em Cuba.
Em todos os casos, estamos a falar de danças coletivas, uma vez que o sucesso da dança depende do mandador e dos bailadores. Estes devem saber que movimentos são associados às figuras mandadas. Em alguns casos, os mandos explicitam literalmente o que é para fazer, noutros, não.
Qual a particularidade do baile mandado em relação a outras danças tradicionais em Portugal?
Temos referências de bailes mandados de norte a sul do país, inclusive nos arquipélagos. Em alguns casos, a prática manteve-se viva até hoje, em contexto bailatório ou ritual. Isso, já por si, é incrível, pois geralmente ouve-se dizer que as tradições se perderam. Noutros casos, apenas existem no repertório de grupos folclóricos. Ainda assim, a adaptação das danças para palco pode ter implicado o desaparecimento do mandador, em favor da criação de uma sequência fixa de figuras, decoradas pelos dançarinos.
Além disso, a figura do mandador é bastante fascinante, traz algum prestígio a quem manda, porque não é qualquer um que é capaz de o ser. É preciso ter várias valências, tais como um domínio correto da dança, aptidões musicais e uma boa projeção da voz! Podemos comparar o mandador a um cantor ao desafio, porque deve saber adaptar-se ao momento e respeitar as regras que enquadram a prática.
Tanto o contexto de execução como a prática em si podem ajudar-nos a entender a razão pela qual vários bailes mandados se mantiveram vivos até hoje. A atenção que os bailadores demonstram para o momento presente e a vivacidade das interações despoletam a emoção, a celebração do estar em grupo. Um baile mandado ilustra uma certa coesão social e ao mesmo tempo potencia a expressão individual. Talvez não seja por acaso que mandar e cantar à desgarrada eram práticas que aconteciam em simultâneo antigamente. Estas práticas materializavam a expressão da voz do povo, durante as quais era possível relatar momentos que marcaram a história local.
“De volta aos Bailes Mandados em Portugal” é o novo projeto da PédeXumbo, apoiado pela iniciativa “Tradições”, promovida pela EDP. Fala-nos um bocadinho sobre o que será este projeto.
Primeiro é preciso enquadrar este projeto no trabalho de terreno que a PédeXumbo faz há anos. Vários dos seus colaboradores procuraram práticas expressivas ainda vivas no seio das comunidades. As recolhas efetuadas de norte a sul de Portugal foram diretamente incorporadas por professores de dança e músicos para serem dadas a conhecer noutros contextos performativos. Tudo isto tem implicado um trabalho com as comunidades e um diálogo com gente de fora. Acreditamos que só através do diálogo, do encontro com o outro, é que se mantêm vivas as tradições. O próprio processo de folclorização desenvolveu-se quando os camponeses se cruzaram com os urbanos e os estrangeiros.
Este novo projeto procura pôr em diálogo diferentes comunidades, para aprenderem práticas uns dos outros e descobrir o contexto no qual as práticas são incorporadas. Uns poderão mostrar como revitalizaram o seu baile mandado, outros poderão encontrar inspiração para fazer o mesmo no seu lugar/concelho.
Com a febre da patrimonialização que se espalhou em Portugal, depois da ratificação da Convenção da UNESCO para a salvaguarda do PCI (Património Cultural Imaterial), nota-se que há uma vontade maior em praticar danças tradicionais fora do contexto folclórico. Podemos citar o exemplo dos encontros aos domingos em Arcos de Valdevez, ou ainda os encontros de minhotos que vivem na Grande Lisboa, nos parques da cidade. Este projeto visa facilitar esta reapropriação, pôr as pessoas a bailar no terreiro e identificar as condições para que seja efetivo.
Nos anos 1970, Pierre Sanchis já observava como os altifalantes nas romarias davam cabo da expressão espontânea do povo, que parou de cantar, tocar e bailar. Da mesma forma, a eletrificação dos instrumentos musicais tornou a voz do mandador inaudível. É preciso garantir boas condições acústicas para a realização de um baile mandado.
Este é um projeto de âmbito nacional e que vai chegar a vários pontos do país. Onde exatamente? E qual a expressão dos Bailes Mandados nestes territórios escolhidos?
O programa da EDP centra-se em concelhos onde uma barragem da empresa foi construída, por isso, escolhemos quatro concelhos onde sabemos que existem/existiram bailes mandados: no Norte, em Ponta da Barca (Vira e Chula Mandada); no Centro, na Lousã (Fado mandado); no Sul, em Reguengos de Monsaraz (Contradança no Baile da Pinha) e em Sines (Valsa mandada).
A nossa proposta é trabalhar nestes 4 concelhos e envolver quem queira participar. Primeiro, faz-se uma formação para conhecer vários tipos de bailes mandados, nestes quatro concelhos. Numa segunda fase, programa-se um encontro em Reguengos para que estas quatro comunidades possam dialogar através da dança. Além de pôr as pessoas a bailar, o objetivo é também formar novos mandadores. Quem já sabe bailar também poderá aprender algo novo.
Há já repertório escolhido para ser trabalhado?
Em 2007, a PédeXumbo iniciou um trabalho à volta das valsas mandadas no litoral alentejano. Limitado hoje à serra de Grândola, que se divide entre Grândola e Santiago do Cacém, é muito provável que esta prática existisse num território mais abrangente, no passado. Professor de educação física reformado, Manuel Araújo é um grande dinamizador da valsa mandada localmente. Contou-nos que já na sua juventude, era apenas executada por uma parte da população. Em dias de festa em Melides, havia dois lugares onde bailar, os moradores da vila ficavam separados dos habitantes da serra. Eram estes últimos que mantinham viva a valsa mandada.
Em Montemor-o-Novo, existe uma valsa marcada, que é também uma valsa de 2 tempos mas não há mandador. Como marcar e mandar são sinónimos, pode-se imaginar que no passado se tratava da mesma dança.
Em Alcácer do Sal, Michel Giacometti gravou várias músicas que correspondem à valsa mandada. Os nomes dados às músicas são Valsa de dois tempos e Sagorra. (O Ladrão do Sado, Vol. 11)
No youtube há um vídeo de um baile em Sines que mostra um conjunto a tocar uma valsa mandada e pares soltos a dançar, sem nenhum mandador.
Há uns anos atrás, Tiago Pereira da MPAGDP ligou à PédeXumbo depois de ter ouvido o testemunho de uma pessoa em Almeida que falava de uma dança cuja descrição se aproximava da valsa mandada. Almeida! Fica muito longe do litoral alentejano!
A contradança, executada nos bailes da Pinha, existe nos arredores de Évora e de Reguengos de Monsaraz. Aqui a prática coreográfica manteve-se, mas a música foi-se atualizando de acordo com os gostos atuais. Tem uma conotação ritual, pois esta dança mostra os jovens adultos à comunidade, como se fosse um rito de passagem. Talvez, no passado, esta dança não tenha tido esta conotação ritual, mas a meu ver, é por tê-la que a prática se manteve até aos dias de hoje. Este exemplo mostra como a tradição é dinâmica e, sobretudo, como tem que fazer sentido às comunidades nos dias de hoje. Actualmente o mandador foi substituído pelo ensaiador, e já não participa ativamente na performance no dia do baile da Pinha.
No Minho, temos conhecimento dos contextos durante os quais podemos ver os viras serem mandados: as festas de verão! Quem lá vai só pode ficar de boca aberta com os ajuntamentos espontâneos de bailadores, castanholas e concertinas! A dança está muito presente nesta região, porque existe um número elevado de grupos folclóricos. Existe também uma emigração muito forte. Com este projeto, talvez entendamos melhor este fenómeno. À primeira vista, parece que o desenvolvimento da prática folclórica e a presença dos emigrantes naquela altura do ano, são elementos chave para compreender o porquê destes ajuntamentos.
Por fim, o fado mandado. Sobre este último temos poucos dados, fora os vídeos de grupos folclóricos online. Há uns anos atrás, lembro-me de presenciar uma tentativa de reavivar o fado mandado no Paúl (Fundão). Formou-se uma roda, onde um acordeão estava a tocar e o músico também estava a mandar. Algo simples e inclusivo! O fado mandado encontra-se numa zona muito extensa, no centro de Portugal. Aí, temos o livro do Rui Vieira Nery para nos ajudar a entender como o fado se propagou no território e a ligação entre este, a desgarrada e o ato de mandar. Para ilustrar esta associação, temos o exemplo de uma dança à desgarrada incluída no repertório do grupo folclórico de Ílhavo. O grupo criou uma coreografia fixa a partir de diferentes figuras e o mandador desapareceu de cena.
Numa primeira fase, será necessário ir à descoberta dos ainda mandadores em Portugal…?
A PédeXumbo já juntou muito material ao longo dos anos e o recurso à internet facilita a compreensão do que acontece nos concelhos. Em paralelo, outras entidades fazem um trabalho similar, como as recolhas feitas pelo NEFUP, na zona do Douro Verde. Neste projeto haverá uma componente de trabalho no terreno de investigação, que é sempre necessária, mas a prioridade é outra: potenciar o surgimento de novos mandadores. Para isso, é preciso produzir conteúdos, como a PédeXumbo faz com a coletânea de brochuras “Para Conhecer e Fazer” ou com a edição de livros e filmes. Interessa documentar as danças mandadas, mas também dar ferramentas para se ser mandador.
“De volta aos Bailes Mandados em Portugal” terá uma dimensão teórica para a criação de conteúdos, cuja direção científica será feita por ti, e uma dimensão prática. Como será feita a ponte entre ambas e com quem vamos poder contar para o desenvolvimento deste projeto?
Eu estou a finalizar um doutoramento que junta antropologia, estudos em dança e artes performativas. O meu objeto de estudo é o baile de chamarritas, um baile mandado muito vivo nas ilhas do Triângulo (Faial, Pico e São Jorge), que pertencem ao grupo central dos Açores. Por outro lado, trabalhei na PédeXumbo vários anos e desta experiência conservo a sua dimensão política, no sentido de ter um papel ativo na sociedade civil. Ou seja, a minha preocupação atualmente é como disseminar dados científicos para quem queira saber mais, sem passar por ler artigos em revistas científicas ou assistir a conferências. É um dever garantir que a ciência tenha repercussão na população em geral. Daí o teórico ter que associar-se ao prático. Para garantir isso, não estou sozinha.
O projeto precisa de formadores de norte a sul para ser implementado! Mercedes Prieto, Marisa Barroso e Ana Silvestre são formadoras muito experientes em dança tradicional, duas delas possuem um doutoramento no domínio da educação e da dança/desporto. Também costumam animar bailes, o que as aproxima da função de mandador. Elas organizam um conjunto de pessoas para criar um momento de convívio.
Para além da distinção teórico-prática temos de voltar à questão política. Um dos objetivos do projeto é dar visibilidade a outra forma de considerar a dança tradicional sem passar apenas pela apresentação do grupo folclórico. Este formato em si não permite manter vivas as práticas expressivas. É preciso de uma prática informal ou ritual em paralelo, ou seja, um contexto para que as danças sejam incorporadas. Uma dança só existe quando é dançada! Para garantir isso, tem que fazer sentido para as pessoas, no seu dia-a-dia.
Neste projeto, escolhemos propositadamente uma prática comum a todas as regiões de Portugal. Com efeito, parece ser o momento de refletir sobre a regionalização das danças tradicionais, estabelecida durante o Estado Novo. Há dados para confrontar, criticar ou confirmar. É preciso questionar a forma como a própria noção de tradição foi construída ao longo do século XX, em Portugal, e como ou porque é que o folclore se tornou um sinónimo de tradição.
O projeto tem a duração de cerca de 2 anos e estende-se até 2022, com várias fases. Haverá momentos abertos ao público em geral?
O encontro em Reguengos de Monsaraz pretende ser aberto ao público em geral. Talvez através da Plataforma ZOOM, possamos propor uma aula aberta a quem não vive nos concelhos citados. Ainda não fixamos todas as atividades que serão realizadas.
Também estamos a planear um momento público em cada concelho abrangido pelo projeto, e esperamos que seja aberto ao público geral.
Que materiais serão produzidos e de que forma serão disponibilizados para consulta?
Ainda estamos na fase de reflexão, mas a ideia é por tudo online para ter o maior acesso possível, à semelhança do que a PédeXumbo tem feito com outras publicações.
Com o primeiro volume dos Cadernos de Dança do Alentejo, temos materiais para a valsa mandada, inclusive vídeos acessíveis na plataforma da Memória Média.
Haverá, em breve, uma brochura sobre a chamarrita do Pico, como já houve uma sobre a valsa mandada. No site da Dança Portuguesa a Gostar Dela Própria, existem alguns registos vídeos de bailes mandados.
Enquanto a pandemia não permitir ajuntamentos, pretende-se criar conteúdos em vídeo para ensinar a mandar, dando informação simples para iniciantes com figuras, música de suporte e técnicas para articular a música e a dança.
Também é preciso material escrito para dar informação sobre os contextos nos quais as práticas são vividas. Procura-se marcar entrevistas com mandadores e animadores de bailes. Está planeado um manual de boas práticas para organizar um baile mandado.
Que impacto se pretende que tenha este projeto no futuro dos bailes mandados?
A ideia é capacitar pessoas singulares ou membros de associações para que revitalizem as suas práticas em contexto informal, como o baile. E garantir que o baile mandado possa voltar a ser executado, em contexto bailatório ou ritual. O futuro dos bailes mandados é voltar aos terreiros! E garantir que se ouve sempre mais a voz do povo, contrariando a monopolização imposta pelos seus representantes (políticos ou de outros tipos).
Os grupos folclóricos podem ser bons parceiros neste projeto. Entendemos que há um trabalho a desenvolver durante os ensaios. Como um mandador não repete as mesmas sequências de movimentos, isso permite trabalhar a atenção dos dançarinos. Altera completamente a qualidade dos seus movimentos, melhora a escuta da música, etc… O imprevisto não pode ser considerado como sinónimo de engano ou de perigo. O risco vale a adrenalina que se gera para conseguir executar o que o mandador anuncia.
Uma vez bailei com um grupo folclórico que tinha participado num projeto da PédeXumbo. Um grupo de baile folk tocava e os dançarinos daquele grupo bailavam misturados com o público. Como era uma música tirada do seu repertório, os elementos do grupo estavam à vontade. O que não sabiam, e eu também não, é que o grupo de baile tinha arranjado a música e alterado a sua estrutura. Tinha acrescentado mais uma dupla cantiga/refrão e dobrado o refrão no fim. Depois do número habitual de repetições cantiga/refrão, a maioria dos membros do grupo pararam de bailar e ajoelharam-se, como costumam fazer no fim das suas apresentações. Como a música não parou, levantaram-se e voltaram a dançar. O meu par, que era membro do grupo, não parecia o mesmo depois daquele momento. Já não era o bailador virtuoso, mas sim o bailador atento, que se deixava guiar pela música. Claro que a parte final foi a que mais gostei! Por excelente dançarino que ele fosse, só na parte final fomos verdadeiramente um par a bailar ao som da música, escutando-a com todo o nosso corpo.
PROGRAMA
VALSAS MANDADAS com Ana Silvestre
26 de Março | 15h00 às 16h30 | Centro de Artes de Sines
2 de abril | 15h00 às 16h30 | Centro de Artes de Sines
7 de maio | 15h00 às 16h30 | Centro de Artes de Sines
Inscrições gratuitas para pedexumbogeral@pedexumbo.com ou servicoeducativoCAS@mun-sines.pt
“BAILES MANDADOS. QUEM MANDA AQUI?” com Mercedes Prieto
12 de Março | 16h00 às 17h30 | Largo do Corro, Ponte da Barca
23 de abril | 16h00 às 17h30 | Largo do Corro, Ponte da Barca
28 de maio (NOVA DATA) | 16h00 às 17h30 | Largo do Corro, Ponte da Barca
Inscrições gratuitas para pedexumbogeral@pedexumbo.com ou lojaturismo@cmpb.pt
“FADO MANDADO. OFICINA DE DANÇA TRADICIONAL PORTUGUESA” com Marisa Barroso
7 de maio | 17h30 | Lagar Mirita Sales | Lousã
14 de maio | 17h30 | Lagar Mirita Sales | Lousã
28 de maio | 17h30 | Lagar Mirita Sales | Lousã
* Ação acreditada pela ESECS-PLeiria
no âmbito da formação contínua para efeitos da progressão na carreira dos docentes destinada a Educadores e professores de todos os ciclos de ensino
Inscrições gratuitas para pedexumbogeral@pedexumbo.com ou formacao.continua.esecs@ipleiria.pt.
DE VOLTA AOS BAILES MANDADOS EM PORTUGAL: A Festa!
10 de Junho | Sociedade Recreativa Campinhense, Campinho (concelho de Reguengos de Monsaraz)
Oficinas de Bailes mandados | 15h00 – 16h30 | Fado Mandado com Marisa Barroso, Valsas Mandadas com Ana Silvestre e Viras e Chulas com Mercedes Prieto
Baile com Carla Nunes, José Faria e Rafael Freitas | 17h00 – 18h30 | baile
Informações para pedexumbogeral@pedexumbo.com